sábado, outubro 28, 2006

Música no coração...

Gostam de música? E de a ouvir bem alto apesar de passar já da meia-noite e de (infelizmente) existirem vizinhos por todo o lado?
Má educação? Talvez, mas ontem a tentação era demasiado grande. A alegria tomava conta de mim e exprimiu-se de forma proporcional no volume com que ouvia música.
Deve ter passado uma meia-hora até que o som estridente da campainha se intrometeu.
Entrei em pânico! Pior que a consciência que me atormentava era ter que enfrentar vizinhos. E pior, vizinhos zangados e com razão.
Ainda pensei em fingir-me morto, ou adormecido, mas reparei que o volume de ruído em minha casa era tal, que a porta de entrada estremecia.
Baixei o som e enfrentei a minha sorte. Cabisbaixo de vergonha abri a porta.

Interrompo a história cujo sentido aparecerá, espero, a seu tempo, para avisar que não estou sob o efeito de quaisquer drogas ao escrevê-la e que não me compete defender a sua veracidade. Para vós deixo essa tarefa.

De volta à porta...Eu não faço sequer ideia de quantos vizinhos tenho e muito menos os identificaria numa sessão de reconhecimento. Diante de mim uma linda rapariga cumprimentou-me delicadamente, ostentando um sorriso estranho que confundia irritação, indignação e ao mesmo tempo uma certa vontade de brincar com a situação.
As suas palavras foram simples.
- Boa noite! Tu estás doido ou apenas alucinado?
Foi então que num acesso de demência e estupidez primária, contestei com brilhantismo.
- É uma pergunta de resposta múltipla?
Antes do sorriso idiota que nascia na minha cara estar completo, levei a maior e mais merecida estalada de toda a minha vida. Por momentos pensei que me saltava um dente, ou que ia ficar a sangrar do lábio.
Ela virou costas e desceu as escadas. Então, a porta em frente abriu-se e o meu vizinho da frente, um simpático velhote, achava eu, saiu para as escadas. Ele já estava a rir quando chegou ao pé de mim. E foi com dificuldade, no meio de tanta gargalhada, que me perguntou já a tossir.
- Precisa de alguma ajuda, meu amigo?
Nem ouviu a resposta, porque voltou de imediato para casa de onde vinham mais risos. A sua mulher ria tanto que tinha as bochechas muito encarnadas e nem conseguia falar.
Foi impossível não esboçar um sorriso, feliz por ter proporcionado ao casal tamanha diversão.
Então, porque a alucinação tem algumas vantagens, tentei emendar o erro cometido. Embrulhei num resto de papel de embrulho, o CD que estava a ouvir e que fora a causa de tanta agitação. Às vezes, para explicarmos a nossas fraquezas, somos obrigados a partilhar a música que invade o coração.
Desci as escadas e na porta onde ela tinha entrado deixei o embrulho pendurado com um pedaço de fita-cola, que também segurava um pequeno papel onde se lia apenas – Desculpa...Mas não consegui resistir...

domingo, outubro 22, 2006

Medo...

Esta história começa num dia perdido em vielas do Bairro Alto, onde dois jovens passeavam.
Ele, João, morria de medo de viver e daquelas sombras que saíam dos becos para o agarrar.
Ela, Maria, tinha o condão de o acalmar, partilhando segredos e sonhos.
Foi precisamente um sonho que os levou até ali.
Com uma câmara de filmar ao ombro, João procurava a luz e locais ideais para esconder a vergonha que já sentia de estar frente a uma objectiva.
Tinham decidido fazer um filme.
Quase em agonia perante os dias que iam passando, João e Maria decidiram concretizar um sonho comum e passaram à acção.
O argumento era simples: Não existia!
Apenas duas pessoas que decidem filmar-se, em situações comuns e outras menos, em busca de um objectivo que ainda desconheciam.
-Olha, vamos começar aqui. Disse João olhando para o cimo de umas escadas, Não eram mais que duas ou três e as paredes em volta estavam sujas e muito pouco atraentes. Ele sempre se irritara com a escolha da parte antiga da cidade para filmar. A maior parte das pessoas raramente vem aqui, pensava. O melhor era escolher avenidas largas e luminosas mas também não o tinha feito.
-Está bem! Disse ela a medo. Quem começa?
-Começamos os dois! Trouxe o tripé a contar com isso.
-Vá, vamos começar.
Sentaram-se nas escadas e começaram a gravar a conversa.
-Foda-se!!!
-Foda-se???? Tás parvo ou quê?
-Que foi? Perguntou João meio a sorrir.
-Decidimos fazer uma obra prima e a primeira palavra que dizes é foda-se??. Vai-te foder tu João Silvestre. Cabrão!
Os dois riram por uns bons dois minutos...As hostilidades tinham começado.
-Isto é uma estupidez. A gente devia ter escrito um argumento. Assim vamos demorar dois anos a acabar isto.
-Qual argumento? Tu és maluca? Só se for aquele livro que andas a escrever desde a Idade Média.
Maria levantou-se furiosa, para logo se sentar de novo.
-Estúpido. Estás a ficar careca.
João riu a bom rir Embora fosse verdade, ainda demoraria uns anos.
-Miúda eu não tenho argumento. Só sei que estou a ficar maluco.
Ela olhou longamente para uns olhos que não escondiam sinceridade.
-Porque estás a dizer isso?
João levantou-se bruscamente e debruçou-se sobre Maria.
-Ontem tive um sonho muito estranho. Acordei assustado e sem ter a certeza de estar acordado.
-Sim? Vá, conta lá! Está bem desculpa. Já percebi que te está a incomodar.
-Olha eu não percebi bem. O sonho era apenas um dia normal em que tudo estava igual, à excepção de pequenos pormenores.
-Quais?
-Aconteciam coisas estranhas. Em certa altura estava a comprar uma revista e uma senhora meteu conversa comigo enquanto esperava para ser atendido. Estava a morrer de tanta seca e constrangimento, com as histórias que ela me forçava a ouvir. De repente fechei os olhos e desejei que desaparecesse. Bum!! Quando os abri ela já não estava lá!
Maria tentou não rir, mas sem sucesso. –Oh meu parvalhão. São as vantagens de um sonho.
-Não estás a perceber. O sonho estava a ser demasiado real e normal. Perante aquele passe de magia, assustei-me e despertei num salto. É com vergonha que te digo que durante uma boa hora tive dúvidas se estava mesmo acordado. Nem o velho truque do beliscão funcionou.
-E agora? Já tens a certeza?
-Sim! Só que o pior estava para vir.
-Ah! Ainda há mais?
-Estúpida. Queres ouvir ou não?
-Vá conta. Estava a brincar.
Ele voltou a sentar-se nas escadas. -Hoje quando vinha ter contigo encontrei uma amiga minha. Aquela por quem tive um fraquinho.
-A do nariz pequenino?
-Oh minha grande besta. O nariz dela não é grande. Ela é que é muito magra.
-Pois! E o Pinóquio era apenas um primo afastado.
-Já acabaste?
-Desculpa. Podes continuar. Esta história ainda vai demorar?
-Se eu te apalpar as mamas prometes que deixas de me gozar?
-Hum. OK! Combinado.
Eu ia a descer para o metro e estava a olhar para trás quando choquei com alguém. Era o Pinóquio!
Os dois riram uns segundos.
-Está bem, pequeno não é. Mas ela é bem gira.
-Bom. Quando reparei quem era fiz aquela cena deprimente que envolve fingir que estou muito surpreendido e contente. Mas de repente, vinda sabe-se lá de onde, comecei a ouvir uma música.
-Uma música?
-Sim, mas só eu é que ouvia. Era a música que eu costumava ouvir quando estava apaixonado por ela.
-Não sei se vomito ou se fico curiosa. Mas de onde vinha a música?
-Já alguma vez elogiei a tua capacidade de observação? Já te disse que não sei! Pelos vistos só eu é que ouvia. Acho que vinha de dentro da minha cabeça. É como se a minha vida passasse a ter banda sonora.
-Foi só dessa vez?
-Não. Agora é a toda hora.
-E só tu é que ouves? Perguntou Maria já meio a rir.
-Não. Às vezes as outras pessoas também ouvem. Isto não pode ser normal. Se fosse só eu, era fácil de explicar. Mas assim...
-Olha, João! Sabes que sou tua amiga e que podes contar comigo, mas confesso que estou um pouco sem palavras. Só tenho uma coisa para te pedir.
-O quê?
-Podias passar uma musiquinha para mim?
-Isso é que é ser amiga. Obrigadinho. E o que queres ouvir? Se calhar o som da minha mão na tua cara?
Já meio irritado, levantou-se e sentou-se algumas vezes tentando acalmar-se.
-Vá lá. Não te zangues comigo. Onde está o sentido de humor?
-Desculpa. Isto está a pôr-me um pouco nervoso.
Passaram poucos segundos em silêncio até que começou a ouvir-se uma música - Singing in the rain. Maria olhou para João preparando-se para uma piada triunfal, quando viu nos olhos dele uma expressão que a deixou pasmada.
-Não me vais dizer que...Vá lá não sejas parvo!!
-É melhor irmos embora. Vai começar a chover.
-Vai o quê?
Subitamente, começaram a cair pequenas gotas de chuva, ao mesmo tempo que um sorriso aparecia e outro se transformava em puro espanto.
-Vá. Temos que ir. A câmara pode estragar-se.
Maria estava como embriagada e apenas conseguiu responder.
-Vamos.
Os dois levantaram-se e foram embora.
-Eu não te disse que não era preciso argumento.

-E agora acredito em ti...

quarta-feira, outubro 18, 2006

O segundo tango...

Voltei como prometera! Numa tarde para que não fosse embalado pela música e enganado, sereno pelo entardecer, cheio de cheiros e mais versos.
Sem a noite todo o lugar parecia diferente. As letras de néon estavam ainda apagadas e o lenço fadista guardado no bolso do sujeito que abriu muito os olhos ao ver-me.
- Senhor! Que prazer em revê-lo. Não mais esqueci esses seus lindos olhos verdes...
Não sei se sorri ou se mordi os lábios para não rir. Irritar-me não seria resposta a tão gentil elogio. Cumprimentei-o com delicadeza e subi as escadas. Não pareceu importar-se por eu entrar ainda de dia e sem suspeita de que alguém me esperava.
De noite as escadas eram um local muito escuro e simples passagem para o interior. Agora, consegui ver um pequeno quintal com um baloiço que não pertencia ali. Era de criança, de uma infância que não existia nesta zona da cidade. Esperei um pouco na entrada, nervoso por não ter um cigarro ou qualquer outra forma de me acalmar.
Lá dentro tudo igual. O dia nunca entrava nesta sala. Aliás, o Sol nem sequer sabia da sua existência e ano após ano ignorava cada recanto cheio de veludo e pesadas cortinas com algum pó.
Mas alguma coisa faltava, como a bailarina que, como esperava, desaparecera sem qualquer memória. Era preciso fechar os olhos, bem sabia! Mas prolonguei ao limite o silêncio, para que o sentisse a falar comigo. Depois sentei-me num banco alto, sem nada para beber e deixei que a música voltasse...
Pela primeira vez na vida dancei sozinho, rodopiando pela alcatifa cor de vinho. Deve ser experiência partilhada pelos mais afortunados, porque passaram breves minutos antes que as lágrimas me escorressem abundantemente. A bailarina voltou então, ainda mais feia e descordenada. Já não tinha chão de madeira antiga e não era só a falta de ruído que transformava o martelar de seus pés num sonho ambíguo e sem sentido.
Toda a cena, desprovida de encanto, de certezas ou aparente magia, transformava-se lentamente numa linda dança, sem arte ou mesmo empenho e tão perto de tudo o que sempre desejei...
Podia ficar ali para sempre, enamorado pela música...embalado pela sensação de nada mais precisar.
Horas mais tarde voltava para casa, arrastando-me com um sorriso eterno. Dentro, uma paz enorme, conquistada pela música, uma dança imaginária e a tarde mais real que alguma vez vivi...

segunda-feira, outubro 16, 2006

Anjos negros...

De todos os mitos, pensava noutro…em que pudesse não acreditar. Anos atrás, li num jornal uma estranha história. Contada num artigo, estava a fábula dos Anjos Negros. Num certo Verão, nas estradas de interior do país, mas nunca junto ao mar, eram muitas vezes vistos vultos negros passando a grande velocidade pelos automóveis que circulavam. A verdade é que não eram realmente vistos. Sempre em noites sem luar e na maior das escuridões algo passava muito depressa, deixando os condutores com uma horrível sensação que não podiam explicar. Assim era porque à incerteza do que não viram, juntava-se um sentimento que trazia pouco medo ou curiosidade. Apenas sentiam a sua presença.
Dias passaram, os relatos aumentaram e a polícia foi encarregue de investigar o estranho caso. Mas o que a todos apaixonou foi a teoria de um jovem parapsicólogo que apareceu um dia, de estranho laço encarnado, num pouco preparado noticiário das oito.
O rapaz, de figura simpática e verdadeira, contou a todos do que se tratava. Eram Anjos!
Anjos Negros que protegiam os humanos de muitos perigos. Segundo uma antiga lenda não era suposto os Homens terem inventado transportes rápidos e modernos. A sua descoberta deveu-se a coincidências de engenharia e à demasiada vontade de alguns. E assim surgiram automóveis, motas e comboios que, por não serem esperados, desequilibraram o nosso Mundo. Os acidentes chegaram e também as mortes e profundas tristezas…
Nessa tempo foram criadas estas criaturas, negras por esconderem a sua intenção, mas sempre vigilantes aos que escolhiam a noite para viajar. Os acidentes pararam subitamente! Sem razão para tal. Sem qualquer explicação.
A maior parte dos viajantes começou então a escolher a escuridão para abraçar a estrada. Durante o dia apenas rodavam os que tinham de trabalhar naquele Agosto tão quente, mas mais calmo e sereno por serem poucos os que saíam durante o dia. As noites de Lua cheia eram autênticos acontecimentos nacionais, com milhares de pessoas sentadas nas bermas das estradas, esperado que os raios brancos e prata revelassem estes protectores. Sem sucesso, mas com longas madrugadas preenchidas por conversas amenas.
Ao primeiro dia de Setembro o noticiário abriu com uma reviravolta. Era relatado um brutal acidente numa auto-estrada no centro do país, perto das quatro horas da manhã.
Um autocarro tinha embatido violentamente contra os separadores, rebolando para a faixa contrária. A causa do acidente deixava o país em choque. O despiste tinha sido causado por três carros que circulavam a grande velocidade na mesma via. Quase a meio quilometro de distância as viaturas foram encontradas, viradas ao contrário, mas sem danos de maior. O que causaria espanto era outro pormenor. Os carros eram completamente negros. Nem um centímetro da carroceria mostrava esperança de cor. As matrículas tinham sido retiradas, os vidros eram escuros, as jantes estavam pintadas de preto e até os espelhos retrovisores estavam cobertos por uma fita isoladora igualmente negra. Os ocupantes nunca apareceram!
Dias depois as autoridades informaram ter desmantelado uma organização secreta que promovia corridas por todo o país, ligadas a redes ilegais de apostas e furto de automóveis.
O parapsicólogo foi ridicularizado na sua última aparição em televisão e, à medida que o Outono chegava, os acidentes voltaram às noites sem luar…

domingo, outubro 15, 2006

Uma noite...

O tango…

Não é possível ler estas palavras sem que sejam acompanhadas por música escolhida para o efeito.
Que permita um doce embalar de sentimentos e percepções muito pequenas.
Talvez erre ao chamar-lhes tango, mas essa é uma das vantagens e belezas da imaginação. Não vale a pena explicá-la. Nem sequer demorar mais que momentos em tentativas que não trazem respostas.
Consegui, ao fim de muitos anos a suprema glória de dominar os sonhos. E então, corajosamente abraçando esta nova capacidade, saí numa calma noite de Primavera.
Era bem real o cheiro do Verão esperando a uma esquina e o aperto na barriga que me alertava para algo que ainda não chegara…
Passei junto a um discreto arco de néon que alternava com a escuridão e onde conseguia ler uma única palavra…Tango!
Uma porta pequena, que conduzia a escadas pouco iluminadas do que supus ser um salão de baile, atraiu-me ao seu interior.
Fui recebido por um porteiro educado, muito baixinho, de lenço fadista ao pescoço e uma suave voz repleta de gentileza.
Entrei no salão com cores de sangue e rosas latinas, que roubavam o pouco oxigénio que ainda persistia.
Havia pouca gente e a maior parte parecia, pela atitude e postura, ser parte do pessoal da casa que, na ausência de trabalho, conversava descontraidamente.
Ao centro dançava a mais feia bailarina que alguma vez havia visto que, num acaso mórbido, era igualmente horrível na forma jamais sedutora com que martelava o chão de madeira escura.
Não tive tempo, apesar da tentativa, de recuar daquele sonho que já não controlava e fui envolvido por um cheiro putrefacto que um lenço gasto exalava com persistência.
A bailarina, mistura disforme de Mari Carmen com qualquer coisa, rodopiava em meu redor, fazendo o trapo vermelho a que chamara lenço abraçar-me de forma grotesca.
A indumentária de vermelho flamengo, nada tinha a ver com um agradável bolero, único elemento que me ajudava a resistir e que tinha escolhido num ínfimo momento em que recuperei o controlo deste sonho quase pesadelo, só para logo o perder de novo no meio dos cheiros, fumos e ambiente difícil de descrever.
Aproximava-se a altura do beijo roubado, neste caso com contornos de sequestro, quando consegui fugir tropeçando nas escadas e no breu que as cobria.
Acordei sem transpirar e com um terror moderado, mas com saudades daquela música que me salvara e do sonho de uma noite inesquecível.
Voltaria no próximo sono…para reencontrá-la, e a todos os outros protagonistas de um quadro desenhado apenas pela vontade de isolar acordes mágicos que faziam parte do que chamo felicidade. Tangos toscos com pedaços do nosso mundo!

O início...

Todos os dias, ao abrir os olhos, não devemos fazê-lo de forma impetuosa. É com cuidado que despertamos para o dia. Se for possível, convém mesmo abrir primeiro só um olho, bem devagarinho, para garantir que ainda estamos no mesmo local. Certas pessoas acordaram arrepiadas por se verem num qualquer lugar distante e desconhecido. É uma experiência que não desejamos. Olhos abertos por fim, há que avançar em bicos de pé até a uma música previamente escolhida ou seguida por impulsos. E depois resta um doce esticar, para não temer e poder iniciar o dia...