terça-feira, dezembro 26, 2006

A cidade...

Mais que um sonho, gostava de poder chorar nas tuas mãos. Impedir um destino sem sentido de levar a tua luz.
Naquele dia sabia já que te amaria, mesmo sem ver e sentir, mesmo sem ouvir rir a tua voz e perceber o embalar.

Cheguei numa tarde em que a Primavera saía sem ruído, em que o sono tomava conta das ruas. Acho que sofri por não ouvir canto ou sapateados.

Lembrei o teu sorriso e como me lembras uma Lua pouco vista e usada. Como encontrei o teu corpo de aromas, mas não consegui tocar-lhe por medo e sem vontade de lutar.

É numa lágrima que teima em não sair, que encontro forças para correr todas as ruas procurando um sentido, uma resposta. Porque dias mais agitados me tiraram a capacidade de perceber sentimentos e perguntas. Foi em becos escuros e depois ruas claras que ofegante corri, caí e não pude parar sem procurar tão doce bailarina. É de raiva que antecipo um sentimento de recordação amarga e bela, de quem não chegou a perceber o que sentia. Fui por bares e praças, pagando a carroças e cavalos para me seguirem por estreitos e antigos caminhos, onde sentia a tua presença.

Já tarde e tão cansado, perdi a esperança de forma pouco normal, sem esgrimir, sem raiva e sem instinto.
Esperei então encontrar-te por magia, por acaso, sem que precisasse de voar, de jogar, de criar lindos espectáculos de magia soberana e quente.

O sonho desabou e nem aroma, nem pele, nem memória de um simples abraço, que tanto queria, que tanto desejei, para que nesta gaveta ficasse gravado mais um pedaço de mim.

Falta coragem, falta ímpeto e a calma recente não ajuda em momentos de normal ansiedade, já não igual. Agora tudo é mais lento e percebo que vêem brisas em vez de ventos e elas pouco empurram.

Fica-me a sensação de que a cidade esperou por mim tantos anos, e ficará em sua calma de Sul, estendendo lençóis brancos nas pequenas varandas.

Abraça-me linda cidade, que esqueço por não ver. Se me tirares a vida leva-a contigo, devendo à pele e sua memória uma recordação antiga e sem espaço.

segunda-feira, dezembro 18, 2006

O beijo...

Já era tarde quando apareceu...a luz ficava menor e quase não podia vê-la. Parecia que se escondia da vida em cada sorriso.
Era uma Princesa sem o saber, de olhos tão verdes mas com medo.
Vinha por um caminho estreito dançando e acho que não eram flores que caiam do cabelo. Deviam ser pequenas fadas que esvoaçavam. Era estranho.
Eu ali fiquei à espera. De nada valia apressar ou ansiar. O caminho só tinha um sentido e terminava à minha beira. Podia assim respirar tranquilo, mas com o coração a bater. Porque não é todos os dias que tal acontece. Que pensam? É um momento de suspiros.
E depois chegou! Os olhos eram mais verdes e as fadas tinham fugido.
Não falava. E a calma começou a partir. Não sei dançar, pensei. Não sei esperar. Que podia fazer?
Ela sim dançou. À minha volta...atrás de mim...mas sempre sorrindo. Era bom que começassem a chover feitiços. Mas tal não aconteceu.
Ali ficámos. Num estado de sono e sonho...ouvindo violinos e lendas.
Até que...até que devagar nos olhámos, parados e a respirar...juntando o peito num só batimento...encostando os lábios sem perceber...num único beijo.

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Num qualquer dia...

Num qualquer dia olhamos para quem ainda não se tinha cruzado com a nossa vida. E então ficamos a sorrir, a olhar, a pensar num colo eterno, numa aventura doce e terna...dormindo, sonhando...
Num acto impulsivo levantamos voo, até quase cair...com o coração a tremer...

Num qualquer dia nos perdemos. Ficamos desprendidos de toda a lucidez e abraçamos os disparates com ternura, mas com tanto empenho!
Não nos é cara a ideia de tentar voltar a sonhar, com calma…e sem vontade de cair.

Ao som de um qualquer tabaco percebi que tinha voltado a mim. E escrevi…
Uma morena de tempestades entrou na minha vida numa tarde com pintas de Primavera.

terça-feira, dezembro 12, 2006

O salto...

Alguém apareceu sem aviso na minha vida!
Gerando, empatias, criando risos largos e abertos. Despertando sonhos e desejos escondidos de os realizar.
Alguém teve a capacidade de me devolver condição humana, de Duende e de Mágico e de quem não pode equilibrar em baixo de um só pé tão fina e doce linha de algodão.
Rapidamente podia cair, sem certeza de qual o lado a receber tão estrondosa queda. Precipitadamente teria que escolher sem ponderar, sonhar…e céus…muito menos chorar.
Na crença milenar, quando morremos temos que atravessar uma ponte fina e afiada como o gume de uma espada. Se o conseguirmos chegamos ao Paraíso…
Receio não os ter…aos Paraísos. Tenho medo de querer viver demais, de pedir demais, de berrar para que os meus brinquedos não desapareçam.
Quero continuar com a ilusão de conseguir suportar tanta vida e sentimento, tanta culpa e sorrisos doces…

Resta-me olhar para dentro, para o fim de uma velha ponte rodeada de breu, que se partiu a meio indicando um vácuo aterrador. Tudo se resume a uma pequena interrogação, traduzida num enorme salto.

sexta-feira, dezembro 01, 2006

A discussão...

Naquela noite já não podia caminhar mais. Não sei se eram dores ou movimentos tão precários que me faziam quase cambalear.
A conversa tinha sido extenuante. Susana era uma mulher forte, que deixava de lado qualquer réstia de carinho quando discutia. Tal acontecia mesmo com assuntos de menor importância. Mas hoje tinha sido diferente. Aparentemente tinha sido descoberto!
Há cerca de dois meses que mantinha um relacionamento com outra mulher. Mais bonita, sincera e tão parecida com a Susana de há cinco anos atrás. Ela tinha mudado. Aos meus olhos ia-se tornando numa mulherzinha que me obrigava a trai-la.
A compensação chegou numa linda mulher que conheci por acaso. Passei os últimos tempos tentando, em vão, decidir-me por fazer a troca que desejava e temia.
Quase desisti até hoje de manhã quando recebi um telefonema. Susana parecia irritada. Quis saber onde andava, porque não atendera a primeira chamada, acompanhando as perguntas com sonoros risos cínicos e o repetir da mesma expressão – Tu não me conheces!
Confesso que cheguei a ter medo. É estranho e impressionante o medo a que as mulheres nos conseguem submeter. Na verdade, penso que o mérito é profundamente nosso e reside na consciência da incapacidade em nos libertarmos. Somos quantas vezes incapazes de largar a maternidade, a sua protecção projectada em mulheres e amantes. De ficarmos sós perdendo a luta por um colo que aspiramos para um dia desprezar.
Já perto da hora de almoço chegou, já irritada, perto de mim. O beijo foi como um arrancar da confissão final e o silêncio seguinte uma verdadeira tortura. Podia ver as suas veias a latejar enquanto engrossavam, preparando-se para me atacar.
Sem aguentar mais, desisti e comecei a falar.
- Susana! Sei que não me vais perdoar e que o que fiz não pode ter justificação. Mas por favor ouve-me um pouco!
Ela respirou com pouca calma.
- Não vai adiantar muito, pois a minha capacidade de te ouvir desapareceu há séculos. Mas fala!
- Eu não queria magoar-te. Sei que te vão parecer palavras gastas e sem sentido, mas tens que acreditar em mim. Não têm sido tempos fáceis e embora não me atreva a negar as culpas, é certo que existem atenuantes. Eu ando muito cansado, pressionado no meu emprego, infeliz no que a vida me tem dado. Podes não entender, mas é difícil para um homem. Não podemos aguentar tanta tradição cruel, que nos empurra a cada momento para acções e pensamentos tão errados. Quase choro quando penso no teu sofrimento e outras vezes esqueço-me de o impedir. Podes agredir-me e continuarei a amar-te para todo o sempre. Reconheço com vergonha o lugar comum e juro que não significou nada para mim. Eu amo-te!
- Ouviste-me? Eu amo-te demais!
Ela pareceu acordar nesse instante de um pesadelo.
- Não penses que me tratas como uma qualquer. Por tua culpa jantei sozinha com os teus amigos. É a última vez que aturo os teus esquecimentos. Vá, despacha-te com esse café. Ainda temos duas casas para ver hoje.

Era já tarde e ainda caminhava atrás dela. Rezava por encontrar outro caminho!

sábado, novembro 25, 2006

O casamento...

Já devia ser tarde quando cheguei à praça onde combinei encontrar-me com ela. Maria era uma daquelas mulheres que amamos com vontade de esganar, apertando o pescoço com todas as nossas forças. Precisava de me acalmar. Afinal ia pedi-la em casamento.
Ao longe reconhecia a sua figura. Era gorda! Na realidade não era, mas sempre desejei que fosse. Nada me daria mais prazer que a chamar de gorda e causar-lhe um décimo de dúvida. Daquelas que enviam com brutalidade as mulheres para os ginásios e dolorosas dietas. Com muito sofrimento à mistura.
Mas não! Sorrindo com o corpo ela avançava confiante. E eu pensava – Vou ter que casar com esta puta!
Felizmente a praça era enorme e dava tempo para respirar, limpar o suor de Inverno e pensar um pouco. Mesmo à distância o volume de uns seios irritantemente verdadeiros, deixava-me em delírio. Na primeira noite em que pude vê-los, tocar a sua pele tão macia, quase tive um orgasmo ainda vestido e só por pequenas carícias. O sexo era magnifico! Nunca me sentira assim na vida. A forma como encaixávamos era perfeita. A pele ia escorregando lentamente, resistindo apenas o suficiente para que o prazer fosse levado ao extremo.
Estava agora perto de mim. Os dentes já brilhavam naquela arrogância idiota que tanto me enervava. Se os pudesse partir acidentalmente! Mas não era possível, porque do meu sonho fazia parte uma cadeira voando...
Reparei que parou para cheirar uma rosa. Era muito parecida com a que tinha no meu quarto, oferecida há uns dias. Só um amor verdadeiro poderia levar uma flor numa tão longa jornada de resistência. Maria tinha-me oferecido a rosa sem qualquer razão. Apenas com um beijo suave e terno.
Ela era linda na forma como cuidava de mim, como podia ser amiga e amante e me acalmava nos meus problemas e tantos medos.
As suas mãos gostavam de pegar nos meus dedos e ficar horas a brincar com os meus pensamentos. Eram parecidas com as da mãe, a quem partiria não só os ossos das mãos...
Quem pensavam que eram? Como não perceber a minha angústia. O riso não era forma de lidar com a diferença e levava-me à loucura. Ela estava próximo! E eu arranhava, furiosamente apaixonado, a mesa da esplanada que me acolhia.
Restavam poucos metros, para que esta bruxa encantadora me desse o beijo que só podia odiar. Um beijo de lábios rosa e muito delicados. Eram perfeitos na forma como cobriam o meu corpo até ao amanhecer e atingiam a perfeita arte do carinho ao tocar na face de uma criança ou de um velhinho doente. Doce Maria...
De olhos negros chegou junto a mim. Beijou-me longamente para que pudesse sentir o seu perfume. Meio enfeitiçado ouvi dizer – Vamos querido?
- Sim Maria, podemos ir. A tua mãe já deve estar à espera.
- Que me querias dizer? Parecias preocupado ao telefone.
Enquanto descíamos para a rua junto ao rio, de mãos dadas, respondi calmamente.

- Daqui a pouco já falamos. Vamos que estamos atrasados.

terça-feira, novembro 21, 2006

O chupão...

Sempre fui fiel! Pelo menos até ao dia em fui posto à prova. E então deslizei com estrondo!
Penso, talvez em ilegítima defesa, que infiel não é quem nunca traiu o cônjuge, mas sim aquele que, perante essa possibilidade, não consegue resistir. Ou, recorrendo à teoria do meu avô, «fiel é o marido que traindo a mulher, não a troca pela amante»!! Ele há vários tipos de abordagens e esta pelo menos permite que eu e os meus irmãos pudéssemos chegar a este mundo. Mas voltemos ao principal.
Passaram mais de dois meses, nos quais me aproximei dela e percebi com total consciência que esta não seria uma simples amizade de trabalho. Mas o meu ego estava mais confortável do que nunca e a inveja estampada nos olhos de alguns, faziam de cada dia um triunfo pessoal.
Até que uma tarde, quase sem saber como, no meio de pequenas mentiras, finalmente me espalhei ao comprido. E o meu pesadelo começou! Ao colocar a gravata frente a um espelho, quase chorei ao ver o meu pescoço. Tinha um chupão! E não era um chupão qualquer. Bem visível, já com o sangue brutalmente pisado, aparecia na parte direita do meu pescoço e tinha pelo menos quatro centímetros de diâmetro. Respirei fundo. Tinha que manter a calma!
Acabei de me vestir, com uma última réstia de esperança, para logo perceber que “ele” estava bem a cima do colarinho da camisa e em contraste com esta parecia ainda mais vivo e saudável. Percebi que não iria embora facilmente.
Estávamos em pleno Agosto, com médias de 38 graus, pelo que cachecóis e gola alta foram de imediato riscados da estratégia que, entretanto, começara a delinear.
- O que é que eu faço?
Corri para a minha "companheira" e responsável pela criação da obra de arte e apontei para o meu pescoço. Ela sorriu e disse - Olha, tens um chupão!
Durante cerca de trinta segundos o meu sangue ferveu e só graças a um inesperado auto-controlo as minhas mãos se mantiveram afastadas do seu pescoço, que por solidariedade por certo se tornaria, devido à falta de oxigénio, ainda mais vermelho que o meu, assim como o seu minúsculo cérebro alojado nas proximidades.
Uma vez mais inspirei com calma e tentei descontrair.
Ao ver-me entregue ao meu destino, saí rapidamente para a rua, pensando numa saída para este beco escuro e sem aparente saída. O que faria uma mulher no meu lugar?
E foi então que a passagem secreta se abriu mesmo à minha frente! Do outro lado da rua estava uma daquelas lojas onde só entro no Natal para compras desesperadas, e onde residia, pensei eu, a minha salvação. Maquilhagem!
Se esta arte ancestral pode esconder quase tudo, incluído décadas inteiras não assumidas, seria por certo capaz de anular um simples chupão.
Corri para a porta e entrei com um sonoro - Boa tarde!
Quase de imediato me arrependi de tão imbecil acto pois as empregadas, que eram três numa loja deserta, convergiram para o balcão à minha frente para, irritantemente, perguntarem em coro. - Em que podemos ajudar?
Com todas a veias do meu corpo a latejar, perguntei de forma directa. - Como é que posso disfarçar isto? E ao mesmo tempo apontei para o meu pescoço.
Não sei se já entraram numa loja destas, mas as empregadas estão por norma bem arranjadas, com grandes doses de maquilhagem e perfume, como se elas próprias fossem um expositor móvel dos produtos que vendem. A mais alta e que estava no meio das outras exclamou. - Isso é um chupão!
Impressionado com tamanha capacidade de observação, limitei-me a acenar com a cabeça afirmativamente.
- E como é que o senhor arranjou isso? Perguntou a mulher, que começava a esboçar um pequeno sorriso.
- Acabei de lhe dizer que quero disfarçar com maquilhagem, o chupão enorme que se alojou no meu pescoço. Como é que acha que eu arranjei isto?
A mulher olhou-me de alto a baixo e respondeu.
- Vamos ver o que se pode fazer. Desapareceu com as colegas para baixo do balcão durante uns segundos, para logo voltarem com a maior colecção de recipientes que vira em toda a minha vida. Quase que corri para um espelho, temendo que existissem outros chupões ou marcas visíveis, mas a diversidade de produtos expostos na minha frente foi de pronto justificada.
- Não sabemos qual a base que se adapta melhor à sua cor de pele.
- A base?
- Sim, é uma espécie de creme que as senhoras usam supostamente para servir de suporte à maquilhagem. De facto o que faz é preencher as imperfeições e desníveis do rosto, cobrindo igualmente manchas ou áreas com deficiente pigmentação.
Fiquei em pânico! Por momentos, pensei que não sobreviveria. Mas com o passar dos minutos uma alegria imensa invadiu o meu coração que podia agora retomar o seu ritmo normal. Era uma autêntica magia. O chupão desaparecera por completo. No seu lugar, uma cópia exacta do que fora um dia a pele do meu pescoço. E por incrível que pareça ninguém diria que estava maquilhado, tal era a perfeição da intervenção. Quase beijei aquelas lindas mulheres que me salvaram e depois de uma simpática gratificação, fui para casa.
A minha mulher já tinha chegado e como eu previra não notou qualquer diferença no meu pescoço. Elogiou, inclusive a minha gravata, oferecida pela minha sogra e que estava perigosamente perto da prova do crime. Mas o segredo manteve-se inviolável. Agora podia descansar!
E foi então que uma tonelada de ignorância e estupidez acumuladas pelo sexo masculino durante séculos e séculos, desabaram estrondosamente nos meus ombros. Atordoado pela descompressão e imerso num estado de felicidade absoluto, segui um hábito antigo que sempre cumpria ao chegar a casa. Tomar banho!
Deve ter sido quando a água no fundo da banheira começou a ficar castanha, que percebi a dimensão do meu acto e caí de joelhos já sem pânico, mas envolto apenas num enorme sentimento que misturava tristeza com a total ausência de inteligência.
Vesti o roupão e dirigi-me à sala, preparado para o pior. Estava exausto e a capacidade para mentir abandonara-me por completo.
A minha mulher estava sentada a ver televisão. Sentei-me perto dela e esperei. Restava-me agora, a táctica suprema. O improviso!
Ela olhou para mim e de imediato percebeu a presença alienígena no meu pescoço. Então disse. - Não tinha percebido que tinhas um chupão. A noite de ontem foi realmente especial. Há uns anos que não te ouvia gritar de prazer!
Deu-me um beijo na testa e desapareceu para a cozinha para fazer o jantar.Fiquei uns minutos perdido, em silêncio, até que as memórias começaram a assentar. Na noite passada tínhamos feito amor, ou sexo, ou lá o que se chama quando um dos parceiros adormece em plena, mas pouca acção. O grito não tinha sido de prazer, mas de susto e dor, por acordar com uma enorme dentada no pescoço. Saímos cedo, sem trocar um único olhar e eu passara a manhã fora do escritório e sem acesso a espelhos ou comentários inconvenientes. A tarde, essa começou em ambiente pouco iluminado e terminaria na mais completa escuridão.

sábado, novembro 18, 2006

Eu...

Deus que não existe que me perdoe de todo o mal que faço a mim próprio e a quem amo sem temer...
A quem acredita e apesar de errar, sempre guardará memória estranha de miúdo tolo que atravessa magia e ventos em vidas calmas.
Nobres olhos de candura capazes de chorar pelos que o fazem sem controlo e não são capazes de falar.
Mensagens disformes materializam a minha ansiedade em viver sem querer esperar. Sem dar ao tempo o seu lugar eterno no nosso equilíbrio e incapaz de perceber o erro de não o fazer.
Não sinto ainda forças para mudar, não sem antes te amar, te apertar em algo que chamo sem nome e grito sem me ouvir. Confunde-me não saber se gosto ou odeio o meu destino de respirar o teu peito.
Quero-te e quero sentir a tua voz, apertando a minha consciência, mas acalmando a minha ânsia.

segunda-feira, novembro 13, 2006

Meu anjo... (pensando)

Um dia soube que chegaria um anjo à minha beira...para acalmar os sentidos em palpitação e quase descontrolo.
Chegou no toque de uma mão jovem e suave que não apertou mas deixou passar pequenos arrepios, que apesar de tudo eram calmos.
Anjos são claros diferentes desta pele, mais morena e linda no seu brilho.
Mesmo sem ouvir, a voz do seu canto já invade o meu espírito porque a imagino em cada momento.
É estranho que me tenha feito parar no turbilhão de onde teimo não querer sair. É mais estranho por sentir que é inatingível mesmo no toque, talvez só podendo perceber o meu íntimo.
Passei...e ainda vou passar muitos anos à procura de coisas que não existem e são uma busca que por vezes força as lágrimas ou apertos mais brutais.
Alguém pode ter roubado a paz do meu futuro só para me obrigar a caminhar por mais tempo como se precisasse de uma longa espada para encontrar a saída.
Serão apenas os momentos de solidão a trazerem-me descanso? Devem ter o seu papel predestinado, pois os mesmos conseguem por breves segundos diminuir a ansiedade e estas tão estranhas lutas.

quinta-feira, novembro 09, 2006

O esquilinho...

Era uma vez um pequeno esquilo que saiu momentaneamente de uma história para crianças, para fumar um cigarro. Ao chegar cá fora encontrou um coelhinho.
Espantado, perguntou.
- Que fazes aqui?
- Vim fumar um cigarro.
- E porque não entras outra vez?
O coelhinho suspirou.
- Por causa do cheiro a tabaco.
- Ah. Pois!
Como é que te chamas?
- Coelhinho Rabino. E tu?
- Esquilinho Manel.
Os dois ficaram um pouco em silêncio.
- Devemos ter os nomes mais estúpidos que existem.
- Pois é! Mas o autor desta história já morreu.
- Sim…Já não podemos assassiná-lo. Idiota!
Os dois riram descontraidamente, até o esquilo perguntar.
- Queres mais um cigarro?
- Sim, pode ser obrigado.
- Não sei porque é que vimos fumar. Não é como se tivéssemos acabado de…Bem, tu sabes.
- Sei o quê?
O esquilo corou um pouco.
- Vá não gozes comigo. Tás a perceber muito bem…o tradicional cigarrinho depois de….
- Depois de quê?
- Olha, não sejas parvo. Depois de fazer amor!
O coelhinho sorriu!
Tu é que és rabino! Fazer amor? Numa história para crianças? Quando foi a tua última vez?
- Bom, ainda estou à espera! Mas de uma coisa tenho a certeza!
- Do quê?
- Quando acontecer vou fumar um cigarro.
- Ah, eu também! Nem podia ser de outra forma.
- Claro! Ficava incompleto!
- Pois é…
- É mesmo. E então? Perguntou o esquilinho agora mais sério.
- Que queres tu?
- Achas que era de experimentarmos?
- Tu querias?
O esquilinho pensou um pouco.
- Acho que não! E tu?
- Também não. E já não tenho cigarros.
- Pois! Vamos voltar a entrar?

- Sim…É melhor!

sexta-feira, novembro 03, 2006

O super herói...

Hoje de manhã, enquanto guiava, pareceu-me ver um minúsculo ponto negro no horizonte, deslocando-se a grande velocidade.
Durante uns minutos a imagem permaneceu igual, indicando que o objecto voador, na altura não identificado, estava a uma distância razoável.
O normal seria tratar-se de um avião que voava ainda longe, mas a baixa altitude, pelo que devia ser um qualquer tipo de aparelho militar.
Era muito cedo e eu viajava sozinho na estrada que se estendia por uma enorme planície, onde a visibilidade era perfeita e o horizonte quase sem fim.
Aos poucos o objecto começou a aproximar-se. Comecei por reparar que não estava tão longe como inicialmente julgara, devendo-se esta ilusão, ao facto de ele ser, na realidade, bastante mais pequeno do que imaginara.
Foi então, com uma mistura de horror e deslumbramento, que percebi que não era um avião ou qualquer outra máquina voadora. O objecto tinha acelerado bruscamente, ao mesmo tempo que alterava a sua rota de voo, em direcção a mim. Então, por mais que me beliscasse, consegui perceber uma figura humanóide, rasgando os céus de braços estendidos. E então pensei. É um super-herói!
Travei instantaneamente e fiquei parado dentro do automóvel, observando. Não estava nervoso nem assustado. Apenas muito ansioso.
A figura voou em círculos à minha volta, para então começar a descer lentamente na minha direcção e pousar com suavidade perto do meu carro.
Muito devagar, para não demonstrar agressividade, olhei então para ela. Devo ter gritado, mas só em pensamentos, porque o que vi me impediu de sequer respirar durante muitos segundos.
Na realidade, seria o super-herói menos convencional que jamais existira e nem com uma crise nas infinitas terras, nasceria um ser tão estranho.
Era até difícil olhar para ele. Não era muito alto, teria cerca de 1,60m, mas formava uma enorme montanha de músculos aprisionados com dificuldade na pele, de tom rosado e com um líquido que parecia suor escorrendo permanentemente e formando uma pequena poça junto aos seus pés, que evaporava no entanto com grande rapidez. A cobrir o corpo tinha um colete e umas calças de ar rude, mas que pareciam resistentes e em muito bom estado. Estava descalço, assentando em pés muito largos para suportar o seu imenso peso. As mãos, estranhamente pequenas e delicadas, eram a última semelhança visível com um ser humano, porque em cima de um pescoço curto e ameaçador, a cabeça e a face eram quase impossíveis de descrever.
Tinha uma espécie de focinho e uma boca enorme com dentes que lutavam por um espaço e de onde saía também um líquido viscoso e transparente que se misturava com o suor do seu corpo. Os olhos ficavam mais recuados e não eram muito grandes. Guardavam uma expressão de calma e de uma agressividade perfeitamente controlada. No alto, um pequeno tufo de cabelo castanho, que parecia negligenciado e umas orelhas muito pontiagudas com um rosa púrpura que pulsava em veias grossas e serpenteantes.
Fiquei em silêncio, sem sair do carro e de cabeça baixa, esperando um ataque brutal à minha vida. Então, ouvi-o a agarrar no puxador da porta e com gentileza, arrancar o metal que rasgou como se fosse papel. Espreitou para dentro e olhou nos meus olhos, para logo estender os braços e me puxar para fora.
Levantou-me no ar, bem a cima da sua cabeça, ao mesmo tempo que duas lágrimas faziam o percurso inverso. Depois, baixou-me lentamente e colocou-me frente a ele com as cabeças quase juntas. O seu odor, que agora podia sentir, não era desagradável e parecia nascer do abundante líquido que o cobria.
Aquele que eu chamara de super-herói juntou então a sua boca à minha e prolongou algo que não posso chamar de beijo, pela dor que me causaria fazê-lo.
Durante aqueles minutos, senti o líquido viscoso a entrar na minha garganta, invadindo-me e emprestando o odor que já me era familiar.
Caí no chão sem reacção e não quis observá-lo a levantar voo e desaparecer nos céus.
Chorei compulsivamente durante duas horas, sem capacidade para sequer definir sentimentos que, apesar do esforço, nada tinham a ver com repulsa ou com o mais simples dos medos.
Naquela manhã nasci outra vez, para um Mundo tão novo e onde teria que reaprender a andar.
Aos poucos levantei-me e retomei o meu caminho, quase gelado pelo vento que entrava onde outrora existira uma porta.
De regresso a casa lembrava-me distintamente de todos os pensamentos que ele me ofereceu sem um único som. Sempre soubera da sua existência! Desde sempre me acompanhou.Hoje posso vê-lo em cada minuto. Já não é costume voar. Vem normalmente num aparelho parecido com uma moto espacial, com muitos brilhantes e de aspecto veloz. Estaremos juntos até ao dia em que morrer, quando a sua protecção não fizer mais sentido!

O bilhete...

Um dia ao chegar a casa, reparei num pedaço de papel preso no limpa pára-brisas de um carro, parado mesmo em frente ao meu prédio. O carro pertence a uma rapariga que mora na minha rua e que secretamente admiro há algum tempo. Não tentem admirar ou platonicamente motivarem um qualquer interesse por alguém que não conhecem! É algo profundamente humilhante.
Mas aquele simples bilhete arrastou toda a minha atenção e com ela muita da trémula paz de espírito que sempre procuro. Chovia, e até em sonhos nevava e ele resistia. Nada parecia querer arrancar aquela folha branca do seu abrigo. Comecei a desenhar um plano que me levaria a conhecer o conteúdo da missiva. Seria um admirador rival? Um aviso de um vizinho, alguma coisa que em sonhos eu próprio escrevera e perdera da memória para sempre?
O dia acordou cinzento, mas à medida que despertava começou a ficar mais claro e alegre. Em breve pude ver um lindo céu azul que me acalmou. Dirigi-me devagar ao carro onde o bilhete ainda esvoaçava. Era estranha a sensação de caminhar para um segredo que inventara por não existir, mas que me acompanhara durante as noites habituais. As mãos estavam secas e não havia rasto de nervosismo na minha tarefa. Ao chegar perto do carro, fiquei um pouco parado, observando. O papel, já um pouco enrugado, ali continuava tornando impossível desistir.
Com muito cuidado retirei-o do vidro para o guardar no bolso direito do casaco. Depois corri, fugindo de nada.
Entrei em casa e agora, já a tremer, desembrulhei a folha onde consegui ler:

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sábado, outubro 28, 2006

Música no coração...

Gostam de música? E de a ouvir bem alto apesar de passar já da meia-noite e de (infelizmente) existirem vizinhos por todo o lado?
Má educação? Talvez, mas ontem a tentação era demasiado grande. A alegria tomava conta de mim e exprimiu-se de forma proporcional no volume com que ouvia música.
Deve ter passado uma meia-hora até que o som estridente da campainha se intrometeu.
Entrei em pânico! Pior que a consciência que me atormentava era ter que enfrentar vizinhos. E pior, vizinhos zangados e com razão.
Ainda pensei em fingir-me morto, ou adormecido, mas reparei que o volume de ruído em minha casa era tal, que a porta de entrada estremecia.
Baixei o som e enfrentei a minha sorte. Cabisbaixo de vergonha abri a porta.

Interrompo a história cujo sentido aparecerá, espero, a seu tempo, para avisar que não estou sob o efeito de quaisquer drogas ao escrevê-la e que não me compete defender a sua veracidade. Para vós deixo essa tarefa.

De volta à porta...Eu não faço sequer ideia de quantos vizinhos tenho e muito menos os identificaria numa sessão de reconhecimento. Diante de mim uma linda rapariga cumprimentou-me delicadamente, ostentando um sorriso estranho que confundia irritação, indignação e ao mesmo tempo uma certa vontade de brincar com a situação.
As suas palavras foram simples.
- Boa noite! Tu estás doido ou apenas alucinado?
Foi então que num acesso de demência e estupidez primária, contestei com brilhantismo.
- É uma pergunta de resposta múltipla?
Antes do sorriso idiota que nascia na minha cara estar completo, levei a maior e mais merecida estalada de toda a minha vida. Por momentos pensei que me saltava um dente, ou que ia ficar a sangrar do lábio.
Ela virou costas e desceu as escadas. Então, a porta em frente abriu-se e o meu vizinho da frente, um simpático velhote, achava eu, saiu para as escadas. Ele já estava a rir quando chegou ao pé de mim. E foi com dificuldade, no meio de tanta gargalhada, que me perguntou já a tossir.
- Precisa de alguma ajuda, meu amigo?
Nem ouviu a resposta, porque voltou de imediato para casa de onde vinham mais risos. A sua mulher ria tanto que tinha as bochechas muito encarnadas e nem conseguia falar.
Foi impossível não esboçar um sorriso, feliz por ter proporcionado ao casal tamanha diversão.
Então, porque a alucinação tem algumas vantagens, tentei emendar o erro cometido. Embrulhei num resto de papel de embrulho, o CD que estava a ouvir e que fora a causa de tanta agitação. Às vezes, para explicarmos a nossas fraquezas, somos obrigados a partilhar a música que invade o coração.
Desci as escadas e na porta onde ela tinha entrado deixei o embrulho pendurado com um pedaço de fita-cola, que também segurava um pequeno papel onde se lia apenas – Desculpa...Mas não consegui resistir...

domingo, outubro 22, 2006

Medo...

Esta história começa num dia perdido em vielas do Bairro Alto, onde dois jovens passeavam.
Ele, João, morria de medo de viver e daquelas sombras que saíam dos becos para o agarrar.
Ela, Maria, tinha o condão de o acalmar, partilhando segredos e sonhos.
Foi precisamente um sonho que os levou até ali.
Com uma câmara de filmar ao ombro, João procurava a luz e locais ideais para esconder a vergonha que já sentia de estar frente a uma objectiva.
Tinham decidido fazer um filme.
Quase em agonia perante os dias que iam passando, João e Maria decidiram concretizar um sonho comum e passaram à acção.
O argumento era simples: Não existia!
Apenas duas pessoas que decidem filmar-se, em situações comuns e outras menos, em busca de um objectivo que ainda desconheciam.
-Olha, vamos começar aqui. Disse João olhando para o cimo de umas escadas, Não eram mais que duas ou três e as paredes em volta estavam sujas e muito pouco atraentes. Ele sempre se irritara com a escolha da parte antiga da cidade para filmar. A maior parte das pessoas raramente vem aqui, pensava. O melhor era escolher avenidas largas e luminosas mas também não o tinha feito.
-Está bem! Disse ela a medo. Quem começa?
-Começamos os dois! Trouxe o tripé a contar com isso.
-Vá, vamos começar.
Sentaram-se nas escadas e começaram a gravar a conversa.
-Foda-se!!!
-Foda-se???? Tás parvo ou quê?
-Que foi? Perguntou João meio a sorrir.
-Decidimos fazer uma obra prima e a primeira palavra que dizes é foda-se??. Vai-te foder tu João Silvestre. Cabrão!
Os dois riram por uns bons dois minutos...As hostilidades tinham começado.
-Isto é uma estupidez. A gente devia ter escrito um argumento. Assim vamos demorar dois anos a acabar isto.
-Qual argumento? Tu és maluca? Só se for aquele livro que andas a escrever desde a Idade Média.
Maria levantou-se furiosa, para logo se sentar de novo.
-Estúpido. Estás a ficar careca.
João riu a bom rir Embora fosse verdade, ainda demoraria uns anos.
-Miúda eu não tenho argumento. Só sei que estou a ficar maluco.
Ela olhou longamente para uns olhos que não escondiam sinceridade.
-Porque estás a dizer isso?
João levantou-se bruscamente e debruçou-se sobre Maria.
-Ontem tive um sonho muito estranho. Acordei assustado e sem ter a certeza de estar acordado.
-Sim? Vá, conta lá! Está bem desculpa. Já percebi que te está a incomodar.
-Olha eu não percebi bem. O sonho era apenas um dia normal em que tudo estava igual, à excepção de pequenos pormenores.
-Quais?
-Aconteciam coisas estranhas. Em certa altura estava a comprar uma revista e uma senhora meteu conversa comigo enquanto esperava para ser atendido. Estava a morrer de tanta seca e constrangimento, com as histórias que ela me forçava a ouvir. De repente fechei os olhos e desejei que desaparecesse. Bum!! Quando os abri ela já não estava lá!
Maria tentou não rir, mas sem sucesso. –Oh meu parvalhão. São as vantagens de um sonho.
-Não estás a perceber. O sonho estava a ser demasiado real e normal. Perante aquele passe de magia, assustei-me e despertei num salto. É com vergonha que te digo que durante uma boa hora tive dúvidas se estava mesmo acordado. Nem o velho truque do beliscão funcionou.
-E agora? Já tens a certeza?
-Sim! Só que o pior estava para vir.
-Ah! Ainda há mais?
-Estúpida. Queres ouvir ou não?
-Vá conta. Estava a brincar.
Ele voltou a sentar-se nas escadas. -Hoje quando vinha ter contigo encontrei uma amiga minha. Aquela por quem tive um fraquinho.
-A do nariz pequenino?
-Oh minha grande besta. O nariz dela não é grande. Ela é que é muito magra.
-Pois! E o Pinóquio era apenas um primo afastado.
-Já acabaste?
-Desculpa. Podes continuar. Esta história ainda vai demorar?
-Se eu te apalpar as mamas prometes que deixas de me gozar?
-Hum. OK! Combinado.
Eu ia a descer para o metro e estava a olhar para trás quando choquei com alguém. Era o Pinóquio!
Os dois riram uns segundos.
-Está bem, pequeno não é. Mas ela é bem gira.
-Bom. Quando reparei quem era fiz aquela cena deprimente que envolve fingir que estou muito surpreendido e contente. Mas de repente, vinda sabe-se lá de onde, comecei a ouvir uma música.
-Uma música?
-Sim, mas só eu é que ouvia. Era a música que eu costumava ouvir quando estava apaixonado por ela.
-Não sei se vomito ou se fico curiosa. Mas de onde vinha a música?
-Já alguma vez elogiei a tua capacidade de observação? Já te disse que não sei! Pelos vistos só eu é que ouvia. Acho que vinha de dentro da minha cabeça. É como se a minha vida passasse a ter banda sonora.
-Foi só dessa vez?
-Não. Agora é a toda hora.
-E só tu é que ouves? Perguntou Maria já meio a rir.
-Não. Às vezes as outras pessoas também ouvem. Isto não pode ser normal. Se fosse só eu, era fácil de explicar. Mas assim...
-Olha, João! Sabes que sou tua amiga e que podes contar comigo, mas confesso que estou um pouco sem palavras. Só tenho uma coisa para te pedir.
-O quê?
-Podias passar uma musiquinha para mim?
-Isso é que é ser amiga. Obrigadinho. E o que queres ouvir? Se calhar o som da minha mão na tua cara?
Já meio irritado, levantou-se e sentou-se algumas vezes tentando acalmar-se.
-Vá lá. Não te zangues comigo. Onde está o sentido de humor?
-Desculpa. Isto está a pôr-me um pouco nervoso.
Passaram poucos segundos em silêncio até que começou a ouvir-se uma música - Singing in the rain. Maria olhou para João preparando-se para uma piada triunfal, quando viu nos olhos dele uma expressão que a deixou pasmada.
-Não me vais dizer que...Vá lá não sejas parvo!!
-É melhor irmos embora. Vai começar a chover.
-Vai o quê?
Subitamente, começaram a cair pequenas gotas de chuva, ao mesmo tempo que um sorriso aparecia e outro se transformava em puro espanto.
-Vá. Temos que ir. A câmara pode estragar-se.
Maria estava como embriagada e apenas conseguiu responder.
-Vamos.
Os dois levantaram-se e foram embora.
-Eu não te disse que não era preciso argumento.

-E agora acredito em ti...

quarta-feira, outubro 18, 2006

O segundo tango...

Voltei como prometera! Numa tarde para que não fosse embalado pela música e enganado, sereno pelo entardecer, cheio de cheiros e mais versos.
Sem a noite todo o lugar parecia diferente. As letras de néon estavam ainda apagadas e o lenço fadista guardado no bolso do sujeito que abriu muito os olhos ao ver-me.
- Senhor! Que prazer em revê-lo. Não mais esqueci esses seus lindos olhos verdes...
Não sei se sorri ou se mordi os lábios para não rir. Irritar-me não seria resposta a tão gentil elogio. Cumprimentei-o com delicadeza e subi as escadas. Não pareceu importar-se por eu entrar ainda de dia e sem suspeita de que alguém me esperava.
De noite as escadas eram um local muito escuro e simples passagem para o interior. Agora, consegui ver um pequeno quintal com um baloiço que não pertencia ali. Era de criança, de uma infância que não existia nesta zona da cidade. Esperei um pouco na entrada, nervoso por não ter um cigarro ou qualquer outra forma de me acalmar.
Lá dentro tudo igual. O dia nunca entrava nesta sala. Aliás, o Sol nem sequer sabia da sua existência e ano após ano ignorava cada recanto cheio de veludo e pesadas cortinas com algum pó.
Mas alguma coisa faltava, como a bailarina que, como esperava, desaparecera sem qualquer memória. Era preciso fechar os olhos, bem sabia! Mas prolonguei ao limite o silêncio, para que o sentisse a falar comigo. Depois sentei-me num banco alto, sem nada para beber e deixei que a música voltasse...
Pela primeira vez na vida dancei sozinho, rodopiando pela alcatifa cor de vinho. Deve ser experiência partilhada pelos mais afortunados, porque passaram breves minutos antes que as lágrimas me escorressem abundantemente. A bailarina voltou então, ainda mais feia e descordenada. Já não tinha chão de madeira antiga e não era só a falta de ruído que transformava o martelar de seus pés num sonho ambíguo e sem sentido.
Toda a cena, desprovida de encanto, de certezas ou aparente magia, transformava-se lentamente numa linda dança, sem arte ou mesmo empenho e tão perto de tudo o que sempre desejei...
Podia ficar ali para sempre, enamorado pela música...embalado pela sensação de nada mais precisar.
Horas mais tarde voltava para casa, arrastando-me com um sorriso eterno. Dentro, uma paz enorme, conquistada pela música, uma dança imaginária e a tarde mais real que alguma vez vivi...

segunda-feira, outubro 16, 2006

Anjos negros...

De todos os mitos, pensava noutro…em que pudesse não acreditar. Anos atrás, li num jornal uma estranha história. Contada num artigo, estava a fábula dos Anjos Negros. Num certo Verão, nas estradas de interior do país, mas nunca junto ao mar, eram muitas vezes vistos vultos negros passando a grande velocidade pelos automóveis que circulavam. A verdade é que não eram realmente vistos. Sempre em noites sem luar e na maior das escuridões algo passava muito depressa, deixando os condutores com uma horrível sensação que não podiam explicar. Assim era porque à incerteza do que não viram, juntava-se um sentimento que trazia pouco medo ou curiosidade. Apenas sentiam a sua presença.
Dias passaram, os relatos aumentaram e a polícia foi encarregue de investigar o estranho caso. Mas o que a todos apaixonou foi a teoria de um jovem parapsicólogo que apareceu um dia, de estranho laço encarnado, num pouco preparado noticiário das oito.
O rapaz, de figura simpática e verdadeira, contou a todos do que se tratava. Eram Anjos!
Anjos Negros que protegiam os humanos de muitos perigos. Segundo uma antiga lenda não era suposto os Homens terem inventado transportes rápidos e modernos. A sua descoberta deveu-se a coincidências de engenharia e à demasiada vontade de alguns. E assim surgiram automóveis, motas e comboios que, por não serem esperados, desequilibraram o nosso Mundo. Os acidentes chegaram e também as mortes e profundas tristezas…
Nessa tempo foram criadas estas criaturas, negras por esconderem a sua intenção, mas sempre vigilantes aos que escolhiam a noite para viajar. Os acidentes pararam subitamente! Sem razão para tal. Sem qualquer explicação.
A maior parte dos viajantes começou então a escolher a escuridão para abraçar a estrada. Durante o dia apenas rodavam os que tinham de trabalhar naquele Agosto tão quente, mas mais calmo e sereno por serem poucos os que saíam durante o dia. As noites de Lua cheia eram autênticos acontecimentos nacionais, com milhares de pessoas sentadas nas bermas das estradas, esperado que os raios brancos e prata revelassem estes protectores. Sem sucesso, mas com longas madrugadas preenchidas por conversas amenas.
Ao primeiro dia de Setembro o noticiário abriu com uma reviravolta. Era relatado um brutal acidente numa auto-estrada no centro do país, perto das quatro horas da manhã.
Um autocarro tinha embatido violentamente contra os separadores, rebolando para a faixa contrária. A causa do acidente deixava o país em choque. O despiste tinha sido causado por três carros que circulavam a grande velocidade na mesma via. Quase a meio quilometro de distância as viaturas foram encontradas, viradas ao contrário, mas sem danos de maior. O que causaria espanto era outro pormenor. Os carros eram completamente negros. Nem um centímetro da carroceria mostrava esperança de cor. As matrículas tinham sido retiradas, os vidros eram escuros, as jantes estavam pintadas de preto e até os espelhos retrovisores estavam cobertos por uma fita isoladora igualmente negra. Os ocupantes nunca apareceram!
Dias depois as autoridades informaram ter desmantelado uma organização secreta que promovia corridas por todo o país, ligadas a redes ilegais de apostas e furto de automóveis.
O parapsicólogo foi ridicularizado na sua última aparição em televisão e, à medida que o Outono chegava, os acidentes voltaram às noites sem luar…

domingo, outubro 15, 2006

Uma noite...

O tango…

Não é possível ler estas palavras sem que sejam acompanhadas por música escolhida para o efeito.
Que permita um doce embalar de sentimentos e percepções muito pequenas.
Talvez erre ao chamar-lhes tango, mas essa é uma das vantagens e belezas da imaginação. Não vale a pena explicá-la. Nem sequer demorar mais que momentos em tentativas que não trazem respostas.
Consegui, ao fim de muitos anos a suprema glória de dominar os sonhos. E então, corajosamente abraçando esta nova capacidade, saí numa calma noite de Primavera.
Era bem real o cheiro do Verão esperando a uma esquina e o aperto na barriga que me alertava para algo que ainda não chegara…
Passei junto a um discreto arco de néon que alternava com a escuridão e onde conseguia ler uma única palavra…Tango!
Uma porta pequena, que conduzia a escadas pouco iluminadas do que supus ser um salão de baile, atraiu-me ao seu interior.
Fui recebido por um porteiro educado, muito baixinho, de lenço fadista ao pescoço e uma suave voz repleta de gentileza.
Entrei no salão com cores de sangue e rosas latinas, que roubavam o pouco oxigénio que ainda persistia.
Havia pouca gente e a maior parte parecia, pela atitude e postura, ser parte do pessoal da casa que, na ausência de trabalho, conversava descontraidamente.
Ao centro dançava a mais feia bailarina que alguma vez havia visto que, num acaso mórbido, era igualmente horrível na forma jamais sedutora com que martelava o chão de madeira escura.
Não tive tempo, apesar da tentativa, de recuar daquele sonho que já não controlava e fui envolvido por um cheiro putrefacto que um lenço gasto exalava com persistência.
A bailarina, mistura disforme de Mari Carmen com qualquer coisa, rodopiava em meu redor, fazendo o trapo vermelho a que chamara lenço abraçar-me de forma grotesca.
A indumentária de vermelho flamengo, nada tinha a ver com um agradável bolero, único elemento que me ajudava a resistir e que tinha escolhido num ínfimo momento em que recuperei o controlo deste sonho quase pesadelo, só para logo o perder de novo no meio dos cheiros, fumos e ambiente difícil de descrever.
Aproximava-se a altura do beijo roubado, neste caso com contornos de sequestro, quando consegui fugir tropeçando nas escadas e no breu que as cobria.
Acordei sem transpirar e com um terror moderado, mas com saudades daquela música que me salvara e do sonho de uma noite inesquecível.
Voltaria no próximo sono…para reencontrá-la, e a todos os outros protagonistas de um quadro desenhado apenas pela vontade de isolar acordes mágicos que faziam parte do que chamo felicidade. Tangos toscos com pedaços do nosso mundo!

O início...

Todos os dias, ao abrir os olhos, não devemos fazê-lo de forma impetuosa. É com cuidado que despertamos para o dia. Se for possível, convém mesmo abrir primeiro só um olho, bem devagarinho, para garantir que ainda estamos no mesmo local. Certas pessoas acordaram arrepiadas por se verem num qualquer lugar distante e desconhecido. É uma experiência que não desejamos. Olhos abertos por fim, há que avançar em bicos de pé até a uma música previamente escolhida ou seguida por impulsos. E depois resta um doce esticar, para não temer e poder iniciar o dia...