domingo, julho 22, 2007

Nas tuas mãos...

Só queria voar contigo.
Juntar pequenos dedos com medo de se tocarem.
Partir em velocidade rasando Igrejas.
Ficar agarrado a um vento e com medo de cair.

Estranho é ainda sonhar que voamos,
enquanto as tuas mãos lutam por se separar.
Se me largasses seria livre para descer em queda.
Para mergulhar com um destino tão certo e cego.

Apertei mais por um momento, sentindo pouca resistência.
Lutei por esquecer os sinais que me fariam desistir.
Um dia lembraria que o toque nunca é assim...
Jamais poderia saber a que sabia este rasgar...

Larguei-te há pouco tempo e comecei a voar.
Não me senti perseguido, nem por um pequeno pássaro.
Descia devagar, sorrindo pelas nuvens que afinal são densas.
E ao aproximar-me do fim recomecei a apertar...
as tuas mãos que poderia recordar.

quarta-feira, junho 06, 2007

A Lua...

Um dia caminhava sem destino.
Quase sem perceber, leve e silenciosa chegaste a meu lado.
Tempos passaram, até que pudesse olhar, falar, até pensar…
Olhos beijaram-me e a boca falou sem que ouvisse.

A pele era perfumada enquanto gotas de água desciam devagar num peito já ofegante. Devo ter perdido os sentidos por séculos e ao voltar a mim, vi sorrindo que não sonhava.
Sem saber porquê, estendi a mão para que te tocasse.
Primeiro leve nos cabelos, que queriam cobrir a face.
Depois roubando ao peito as gotas que rebentavam.

Quando parei era noite e a Lua, deitada sobre uma pequena nuvem, parecia querer falar.
Protegido por ela segui caminho, agora só.
Senti ciúme lá do alto, de quem deseja ser mulher.
Senti perfume nas mãos, de quem me faz sonhar.

Parei de repente, olhei em redor e nada vi!
Só um penhasco altivo e orgulhoso inclinado sobre o mar.
Corri para o vento e já sobre as ondas, gritei sem um único som.
Abracei a Lua e por ela chorei.

Por um momento juro que voei e só então te amei, num segundo breve e gasto.

segunda-feira, maio 14, 2007

Noite…

Só, calmo e ansioso,
Procurava-te com o olhar.
Durante anos perto do mar,
À noite perto de mim!

Com um sorriso e depois sem ele.
Com mágoa, paixão e desespero,
chegaste perto de mim,
nessa noite fria e escura.

Quase sofri, quase chorei,
contive o meu peito e sonhei…
com estrelas, com morte e sem paz.

Rasgo de dor, choro de amor,
Corro caminhos sem os encontrar.

Subitamente paro e escuto a tua voz!
tremendo, encontro as tuas mãos
e sinto a sua pele.

Posso morrer, podia sofrer e nada sentia.
Só a memória deste momento,
que guardo doce e terno
e me deixa viver sem ti.

segunda-feira, abril 30, 2007

Veludo...

Não me recordo do toque do veludo. Lembra-me mais um som do que outra sensação. Talvez pela música...talvez por outras memórias...

De muito pouco vale ceder a uma tristeza que nos procura. Cada um de nós tem que esquecer o que tanto o faz sofrer. Parece e pode ser fácil, porque vamos encontrando pequenos momentos de felicidade. E ganhando coragem para continuar.

Preciso fazer um considerável esforço para recordar tudo o que aconteceu. Parecia ainda que não podia falar ou sequer escrever sobre a minha vida, mas ela a isso me obriga. A vida que não troco nem mudo, embora às vezes o deseje.

Um dia, de forma tão simples e pouco original, simplesmente trocámos um olhar. E sentimos que entre olhos do mesmo tom se tinham estendido tantas palavras. E depois o tempo foi passando até que pudesse encher-me de um quase atrevimento.

Confesso que com habilidade consegui saber o que não esperava e portanto não assustava.

sexta-feira, abril 20, 2007

Pensando…

Os pensamentos chocam com estrondo, avançando por pequenas vielas, patrulhadas por velhas…tão velhas e gatos vadios incapazes de os deter.
Chegam à luz e logo se escondem por de trás de sombras acinzentadas com enormes grilhões cobertos de ferrugem.

É inútil, porque logo fogem, disparando horizonte a cima, raspando pequenas folhas e soltando gotas orvalhadas quase em evaporação. Lá no alto encontrei o teu toque, a doce lembrança de um abraço, um beijo cheio de medo e felicidade, um sorriso de deslumbre que me leva para os sonhos.

Teimo em não querer descer e enfrentar os outros demónios que me aguardam e a uma explicação…um argumento para tanto amor, tantos impulsos e actos.

Gritar ajuda e faço-o de peito quase explodindo de sinceridade. Na ausência de flechas e outras armas, combato com o olhar e espero…

segunda-feira, abril 09, 2007

A rapariga de caracóis...

Se pudesse rir tinha a certeza que o faria até me doerem os músculos da barriga. Mas a vontade é de soltar sorrisos que me mantêm a baloiçar sem saber o que fazer.
Há dois dias reparei que a minha colega de trabalho tinha imensos caracóis. Seria estranho e até pouco usual, que só ao fim de meses pensasse nisto. Mas eram mesmo muitos e a cada minuto parecia que aumentavam.
Parei de trabalhar, como faço frequentemente, e pus-me a observar enquanto falava. E foi então que começou. Certas plantas, se não forem regadas, ficam com as folhas muito fracas e ao perderem vigor, começam a escorregar para junto de um vaso ou da terra. Se lhe devolvermos a água, de imediato as folhas começam a mexer-se e a levantarem-se contra a ideia de imobilidade que tantas vezes temos destes seres.
Com os caracóis da minha colega...parecia que acontecia o mesmo. Notei que, enquanto falávamos, a cada minuto que passava uma madeixa de cabelos encaracolava subitamente. De início pensei não estar a ver bem, mas ao fim de dez minutos comecei a transpirar de nervosismo. Com um relógio, controlei ao segundo o tempo que separava estes momentos e logo tive a certeza. Ao fim de exactamente sessenta segundos, lá ia mais um pedaço de cabelo para cima, encaracolando de forma rápida e tão perfeita.
Depois, parei de conversar, e os caracóis pararam também. Se continuasse calado muito tempo os outros começavam a estender-se anulando a forte ondulação que já tinham formado. Comecei de novo a falar!
Durante quase uma hora não me permiti a um meio segundo de silêncio. Os caracóis formavam-se cada vez mais rápido. Partiam a grande velocidade para o alto, unindo-se aos que já haviam feito o mesmo percurso.
A minha colega ganhava um lindo sorriso, percebendo-se diferente.
Quando já não haviam mais madeixas para encaracolar, continuei a conversar, rindo e contando histórias antigas. Os caracóis riam também e agradeceram a voz que os protegeu e fez de novo viver.

quarta-feira, março 28, 2007

Não sabia…

Não sabia que te amava…
Nem o sonhei durante minutos em que não dormia.
Via Fadas e Duendes, mas os Pós de alguma Magia,
não me fizeram suspeitar de um arco-íris que me perseguia!

Claro que não era normal. Até no dia mais bonito e azul do ano,
lá estava ele esperando a um canto, por de trás de qualquer colina.
Nessa altura devia ter percebido. E devia ter corrido por um pote,
que não era de ouro mas de sonho e muita vontade.

Hoje, grito à distância, para que me oiças e sintas. Amo-te!!
Amo-te mil vezes e mais do que possa suportar.
Escrevo versos antigos e gastos, e desejos de te abraçar, nada mais simples…
Sem exageros de poesia ou ambição literária. Apenas pequeninos arrepios.

Quero-te sem te poder resgatar de outras torres já faladas,
mas confiando num olhar com poderes irresistíveis.
Chamo pelo teu nome, guardo esperanças e feitiços,
cerro punhos e lábios em esforço, por tão querer…

Ter-te-ei em sonhos ou nos meus braços!
Por já me sentir tão perto, guardo as últimas pulsações,
e já sorrindo de infinita alegria,
Observo a pequena folha cair no lago…


(texto antigo de emoções já perdidas)

quarta-feira, março 21, 2007

O Monstro e a Lua…

Eram tempos difíceis e em que raramente os dias nasciam belos e cheirando a terra molhada. O orvalho tinha há muito secado nas infinitas planícies, e as enormes árvores que formavam a floresta ameaçavam tombar de fraqueza e desespero.
Existiam duas pequenas aldeias ali perto, que tinham o vigor das suas gentes e almas, e pareciam continuar a envelhecer muito lentamente.
Não eram rivais, nem sequer muito distantes, sendo separadas apenas por um rio de águas tranquilas e mais uns hectares de terras férteis cultivadas.
A maior aldeia, Ornae, era a mais antiga e os seus habitantes pertenciam a famílias ancestrais que ali viveram por muito tempo. Na outra aldeia Kermea, vivia um povo estrangeiro que ali havia chegado muito depois, e com a autorização dos locais se estabeleceram do outro lado do rio. Estranho era não existirem nomes para os dois povos. Ambos usavam o nome da aldeia como apelido, e para nome próprio, escolhiam estranhos sussurros que pareciam esconder-se de qualquer ouvido.
A floresta ficava para Oeste das aldeias, onde o rio nascia e trazia a sombra da noite, quando o Sol se deitava nas árvores seculares.
E então chegava o medo! Diziam os de Ornae, que na floresta habitava um Monstro horrível e violento, que matava quem ousasse entrar nos seus domínios. Certo era que ninguém o tinha visto alguma vez e mesmo os ruídos que por vezes ecoavam, podiam facilmente ser de outro qualquer animal ou apenas o vento derrubando uma velha árvore. Mas a lenda permaneceu e também Kermea não dormia em paz, pensando que o ser maldito atacaria as suas casas e mataria famílias inteiras.
Diziam os mais velhos, que apenas um segredo o impedia de atacar as aldeias. O Monstro tinha medo da Lua! A razão para tal temor era até muito simples. As árvores na floresta eram muito altas e de vegetação densa. Mesmo em noites de Lua cheia, a sua luz passava com dificuldade até ao solo e quando o conseguia, filtrada por inúmeros ramos e folhas, chegava em forma de finos raios brancos que a besta pensava serem mortais, fugindo deles para sobreviver. Na orla da floresta, os ramos eram menos densos e os raios da Lua formavam um imaginário conjunto de grades, que o impediam de sair do seu refúgio.
As noites sem Lua eram passadas a recuperar os sonos perdidos e a reforçar abrigos de espessa folhagem no centro da floresta, que o protegeriam quando ela voltasse.
Muitos ciclos de Lua se passaram neste frágil equilíbrio, até que as duas aldeias ficassem finalmente em real perigo.
Na sua obsessão de esconder a Lua, o Monstro foi tapando todos os espaços por entre as árvores e durante o dia também o Sol era incapaz de penetrar. Em certa altura, até mesmo a água da chuva não conseguia chegar ao solo e a terra começou a secar, ficando dura como pedra e com enormes rachas que serpenteavam. Sem água e a luz do Sol, a floresta adoeceu e começou a definhar, e em todas as noites estalavam ramos e caiam no solo enormes árvores que desistiam de viver.
O medo apareceu então para os habitantes da aldeia. Sabiam que estava para breve o colapso da floresta e que o Monstro perceberia que a luz da Lua não tinha poderes para o matar, ou sequer magoar e que tal crença não passava de um engenhoso truque, que provavelmente os antepassados dos que viviam em Ornae tinham criado para sua protecção.
Mas agora o tempo escasseava e os habitantes das duas aldeias temiam pelo pior. Quebrando a conduta habitual, convocaram uma reunião de anciães de quem se esperava uma solução para a ameaça. Ornae e Kermea uniram assim, pela primeira vez, esforços que nada tinham a ver com a sua organização territorial, mas por questões da sua própria sobrevivência.
O local escolhido foi um pequeno coreto que existia no centro da ponte e que só uma vez tinha sido usado, no centenário de yntik, patriarca de Ornae e dos poucos cujo nome pode ser minimamente traduzido ou pronunciado.
Num círculo de bancos de pedra juntaram-se seis membros de cada aldeia, rodeando yntik, no centro, cumprindo o papel de moderador.
Durante horas conversaram calmamente (ambos os povos não apreciavam discussões acaloradas), tentando descobrir uma saída para o problema. Fugir estava fora de questão, pois esta era a única zona fértil conhecida e ninguém tinha coragem de partir.
A planície onde viviam, era como um Oásis que estava situada no centro de um horizonte sem fim, sem vegetação e coberta por uma crosta seca e aterradora sem quaisquer sinais de vida.
Perante o silêncio e desânimo geral, um dos anciães levantou-se e colocou-se junto da pedra do centro. Parecia ser de Kermea e observado pelos restantes começou a retirar o enorme lenço que lhe cobria a face e que cujo uso era obrigatório quando os habitantes das duas aldeias se encontravam. Para espanto geral era um jovem de Ornae.
Era bem conhecido por ser neto de um dos anciães mais respeitados e que naquela noite não comparecera por estar gravemente doente. O rapaz inclinou-se perante os membros do Conselho, aguardando a sua tolerância e permissão para falar.
Yntik sorriu e pediu-lhe que transmitisse os seus pensamentos. O plano era simples. Consistia em usar os fogos sagrados, arremessando-os para o centro da floresta onde, com sorte, surgiria um incêndio que destruiria as protecções construídas pelo Monstro, deixando a luz da Lua entrar com todo o seu brilho e esplendor. Este morreria pela acção dos raios que evitou durante séculos, pois não tinha por onde fugir. O silêncio foi profundo. Todos tinham a certeza de que a lenda não passava disso mesmo e a Lua seria tão inofensiva para o Monstro como o era para os humanos. Desanimados e zangados com a intromissão do rapaz, os anciães regressaram a suas casas deixando os seus mantos no coreto, desistindo de encontrar uma solução.
O rapaz ali ficou, chorando de raiva, sem conseguir agora reprimir uma vontade de crescer nos sonhos e nas crenças que há muito guardava.
Sem que alguém soubesse era dos poucos que se aproximava da floresta e mesmo assim só quando a Lua estava bem cheia e os seus raios lhe traziam segurança e ambição. Junto às primeiras árvores deitava-se bem escondido e ficava a ouvir…
Escutava os passos pesados do Monstro, os seus gritos de terror perante um inesperado raio de Lua que passava por entre ramos quebradiços, e conseguia até sentir um leve odor a queimado que imaginava ser a pelugem do animal, numa agressão enfeitiçada da luz que partia a grande velocidade do satélite distante.
Por tudo isto continuou a chorar, pela sábia ignorância de velhos não crentes, mas pior do que tudo, por temer também ele deixar de acreditar.
yntik preparava-se para se deitar. Estava exausto e muito assustado. Não conseguia afastar a imagem da face do jovem entusiasmado com uma solução mágica e absurda em que não conseguia acreditar. Não era possível que a lenda fosse real. Estava quase a adormecer quando ouviu um enorme estrondo. A aldeia iluminou-se como se o dia pudesse chegar mais cedo. Abriu a janela do seu quarto e paralisou com o cenário que os seus velhos olhos vislumbraram. Uma quantidade enorme de fogos sagrados explodiam ruidosamente e disparavam a grande velocidade, na direcção da floresta. Durante breves minutos, todo o armazém onde eram guardados foi esvaziado do seu conteúdo e logo as chamas começaram a nascer no centro da floresta. O fogo aumentou de dimensão e consumiu por completo enormes árvores que começaram a cair. O jovem, já quase desistindo da sua crença, não conseguira resistir a um impulso sem explicação, mas que instintivamente o levou a agir.
O que os anciães não sabiam, era que o rio nascia precisamente nessa parte central da floresta, numa pequena lagoa circular, último reduto de vida na Natureza já moribunda. Mesmo no meio ficava uma ilha onde morava o Monstro, que ao primeiro sinal de fogo mergulhara na água fria. Esse círculo, que o rapaz conhecia, impediu que o fogo alastrasse ao resto das árvores, criando apenas uma clareira que agora deixava a luz da Lua entrar, reflectida magicamente na água que corria naquele local. O Monstro tremeu ao sentir o ar desaparecer dos seus pulmões e, preparado para finalmente encontrar o seu destino, começou lentamente a sair de dentro da lagoa. Fechou os seus olhos estranhamente tranquilos e mansos, esperando a dor e o queimar da sua alma. Então, começou a sentir algo distante da dor ou do medo e com um súbito arrepio pela primeira vez experimentado, abriu os olhos devagar. No alto, brilhante e mais linda do que nunca, a Lua parecia querer acalmá-lo e lançou encantos que desceram, enfeitiçando um coração afinal tão calmo.
A partir desse dia, o Monstro apaixonado começou a cuidar da sua floresta deixando que Sol e Lua entrassem gentilmente.
As aldeias puderam viver em paz e o velho ancião sorriu de novo, pela alegria de ainda aprender.

terça-feira, março 13, 2007

O regresso...

Um dia, vários anos depois, regressei aquele lago com que sonhara todas as noites desde que partira.
Ao chegar notei que a vegetação em redor era agora muito mais densa e só usando a minha espada consegui avançar lentamente. Os meus olhos viram, e não consegui fugir de uma realidade que me fez parar e cair de joelhos.
A torre, outrora pequena e ridícula, era agora imponente, passando as nuvens em altura e desafiando os ventos que a agrediam. Estava envolta num emaranhado de plantas trepadeiras espinhosas, de aspecto velho e aterrador.
Olhei para o alto, mas era impossível saber se a minha Princesa continuava na varanda, pois a névoa era espessa e negra, perturbando a minha visão.
Furioso, desembainhei novamente a espada, e comecei a cortar as trepadeiras e espinhos que envolviam a torre. Durante horas, cortei e arranquei com as próprias mãos, aquela Natureza feia que me impedia de subir ao meu destino.
Por fim, completamente exausto, e perto do descontrolo, larguei a espada e iniciei uma escalada de impulso, ignorando a dor profunda que sentia enquanto os espinhos rasgavam a minha roupa e pele, a cada metro que avançava.
Estava já muito perto da varanda, mas não conseguia ver o que me esperava.
Por fim, consegui alcançar o topo da torre e parei durante uns segundos para recuperar, em vão, o fôlego e as forças.
Então, sem que pudesse resistir, ou agarrar-me a qualquer esperança, escorreguei e mergulhei com vertigem para o chão distante. Fechei os olhos e desejei que tudo acabasse depressa. Talvez, a sorte me fizesse cair em cima da espada que deixara cravada na terra molhada. Morreria de forma mais digna e combatendo, não contra dragões ou negros exércitos, mas por algo igualmente nobre.
Foi com espanto que o meu mergulho se transformou num pequena queda, incapaz de provocar um simples arranhão. Sem que percebesse, a torre voltara ao seu tamanho inicial, pequena e já sem quaisquer névoas a envolvê-la.
Estava deitado de costas num manto daquelas folhas que enchiam agora o lago por completo, à excepção de uma ínfima parcela que deixava a água brilhar reflectindo a luz do Sol. Esse espaço por preencher, tinha as medidas exactas de uma única folha e esperava que a mesma brisa mágica, o cobrisse finalmente.
Levantei-me e olhei para a varanda, onde encontrei a Princesa dos meus sonhos, desta vez sorrindo e sem procurar fingir que me observava. Nos cabelos não restavam folhas, mas nas mãos guardava apenas uma, que poderia caber na perfeição no último espaço que restava no lago.
Era a mesma folha que lhe tinha deixado quando ali estivera e em que agora recaía uma imensa responsabilidade.
Sorri e afastei-me um pouco, para me sentar numa sombra calma não muito longe dali.
Esperaria tranquilo, com a certeza de que o destino depressa revelaria os seus segredos, afastando ventos difíceis e tempestuosos.
Dormi com um sorriso mais doce e aguardei a minha sorte…

quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Uma fábula...

"Procuramos um sonho durante a vida. Quase sempre sem forçar, vemos dimensões e corpos estranho que tentam tomar este espaço. Mas não é por isso que devemos quebrar.
Cada sonho é de uma só pessoa, que o alimenta e faz crescer com doçura. Profundamente errada, é a tentativa de os roubar ou sequer partilhar, mesmo que com guerreiros do mesmo exército.
Livres são os que sem esforço vêem as suas asas crescerem, rompendo sem dor a pele que as abriga, e voam a distância segura do Sol, para de noite tocarem as estrelas."

"Foi quase sem perceber que nos olhámos e descobrimos os mesmos pensamentos que trazem insónias e corações acelerados."

Às vezes, quando o sono teima em chegar e começo a ter dores de inquietação, entro num estado de meia lucidez que está longe de uma calma que esperava para estas situações.
Recorro a técnicas inventadas para aproveitar este tempo, que era de repouso, para sonhar e construir outras realidades. Mas nem sempre com sucesso. Por vezes o torpor traz sentimentos e confusões desconfortáveis, que sinceramente me magoam.
Gratos são os momentos em que a necessidade de dormir não é imediata e posso simplesmente deixar-me voar sem preocupações de rotas ou sustentações mecânicas.
Pena ser raro, mas talvez por isso tão precioso, o estado em que quase se sonha acordado e que, estando num semi-controlo da fantasia, esta é sentida como realidade.

Querendo partilhar o que me pertence por direito, aborrece-me profundamente a técnica literária e a obrigação de um enredo bem construído para quem lhe dedica atenção. É só uma questão de paciência! Com as palavras e frases surgirá, espero eu, uma lógica para tudo isto.
Tenho dormido mal! Parece-me um excesso de energia acumulada, de pensamentos a mais para um cérebro apenas humano que não processa a velocidades tão elevadas. Mas conheço as razões para tal, ou pelo menos algumas!

Há uns anos, noutras fases, mas com os mesmos sintomas, descobri numa noite mal dormida, a razão de ser das insónias.
O mistério, encontrei-o numa fábula conhecida por poucos, e mesmo esses apenas porque lhes contei.
De Anjos da Guarda sei pouco, a não ser que o meu é poderoso e muito trabalhador. O que conheço bem são Duendes!
Sim…Duendes! Pequenos e verdes, por força de livros infantis e de estereótipos impossíveis de desalojar. E ainda bem!
O que os livros não me contaram, foi que todos nós temos um Duende! É verdade, cada alma que conhecemos tem um Duende, ou cada Duende recebe uma alma, dependendo da perspectiva. Não é importante!
Ao contrário do que me disseram, eles não vivem nas florestas Irlandesas, nem mesmo nas mais verdes e húmidas. Nem sequer vivem neste planeta que nos abriga. Vivem num outro, que não é muito diferente, a não ser pelo verde, muito mais presente e luxuriante. Aí vivem os nossos Duendes!
Há no entanto uma característica desse Mundo que convém reter. Tudo está ao contrário!
Mas não encaremos este facto em termos físicos. Não está tudo de pernas para o ar.
É no tempo que encontramos as diferenças. Quando o nosso dia nasce, o deles está a acabar e a nossa Lua só aparece depois de acordar o seu amigo Sol, que vive nesse Mundo. Até aqui tudo bem. O mesmo acontece em diferentes locais da Terra, mas como disse isto é uma fábula e nelas não existem as preocupações de Galileu ou Copérnico, nem se perde tempo a justificar realidades.
Passemos então ao principal. Os nossos Duendes!
Quando nascemos, julgamo-nos sozinhos e sem direito a protecção divina, que não a das religiões dos homens. Mas não! Essa protecção existe!
Cada vez que um bebé vem ao Mundo, existe um Duende que lhe corresponde. Mas não é um Duende recém nascido, é antes um ser velho, muito velho, que cuidará da nossa infância.
Lembram-se do que contei? Naquele Mundo tudo é ao contrário. Os Duendes começam, perdoem-me, mas não sei por que artes, por ser muito velhos e com o passar do tempo vão ficando mais novos. E é aqui que voltamos às insónias.
É que estes Duendes têm uma função. Proteger o nosso sono! Para que cada um de nós possa dormir, o seu Duende tem que ficar acordado durante todo esse tempo. Se ele se descuidar e adormecer alguns segundos a meio do dia, acordamos nós durante a noite sem perceber bem porquê.
A Natureza, no entanto, é sábia e ao gerir o equilíbrio destes Mundos traçou um plano eficaz. Os idosos dormem pouco e os Duendes muito velhos, quase nada. Esta aparente contrariedade é muito útil para quem tem que proteger os sonos prolongados de um bebé.
Ao contrário, quando os Duendes ficam mais novos, não aguentam tanto tempo sem dormir, e os nossos idosos passam a estar mais horas de olhos abertos, julgando-se muitas vezes com medo de dormir…e não mais acordar.
E foi ao conhecer esta história que percebi!

As minhas constantes e terríveis insónias! Tinha finalmente percebido ao sua causa!
Durante alguns anos, enquanto estudava, apenas porque me habituei a fazê-lo, troquei de horários. Em meses seguidos, deitava-me quase de madrugada e dormia até ao Sol já estar bem alto.
Sem perceber, obrigava o meu Duende a um esforço insuportável. Tinha que se manter acordado até horas em que deveria estar a sonhar (é assim que os Duendes recuperam forças) e dormir durante o dia com um Sol que no seu Mundo é ainda mais forte e radioso.
Ele cumpriu a sua função até ao limite das forças, mas acabou por ceder. E passou então a desmaiar de sono e de cansaço em alturas que deveria estar acordado, para que eu pudesse dormir. E então chegaram as insónias!
Hoje, cuido muito mais do meu Duende e percebi que a protecção não é apenas sua função.
(In)felizmente, outras causas nos levam o sono, e contra essas os Duendes nada podem fazer, ou melhor, quase nada! Falta apenas um segredo na minha fábula…Todos os Duendes se conhecem, mas apenas entre alguns existe uma relação forte e de união. Na sua ligação poderá estar a resposta às minhas questões. Continuo à procura…

domingo, fevereiro 25, 2007

O lago...

Conheço uma princesa. Tem longos cabelos muito claros que chegam a envergonhar o Sol, quando este espreita pela manhã.
Foi há muitos séculos que pela primeira vez a vi, numa torre que não era muito alta, mas parecia difícil de alcançar. Estava cansado, pois cavalgava há muitas horas e a poeira fazia-me lacrimejar com ardor.
Parei junto a um pequeno lago perto da torre e fiquei sentado a olhar. A princesa não parecia muito assustada, nem à procura de um herói que a resgatasse daquela prisão frágil e gasta pelo tempo. Não era normal! Qualquer donzela tem sempre um ar delicado e de quem suplica por um nobre cavaleiro que a salve do seu cativeiro. Mas ela não. Estava encostada numa espécie de varanda, claramente fingindo que não me via, enquanto soltava as folhas que decoravam o seu cabelo, para planarem suavemente até perto do lago. Algumas chegavam mesmo a cair dentro de água, mas a maioria não voava tão longe.
A minha jornada não tinha ainda um objectivo conhecido, por isso podia acampar ali mesmo, guardando a minha princesa.
Passaram três dias e três noites e ela olhou uma única vez para mim, quando uma das folhas, que já escasseavam, ajudada por uma brisa mágica atravessou o lençol de água e parou perto das minhas mãos. Peguei-lhe devagar e olhei para a torre, ainda a tempo de ver um sorriso logo escondido.
Era tarde e o mesmo Sol envergonhado descia por detrás de uma montanha. Deitei-me também segurando a folha que me fora oferecida e desejei muito poder sonhar nessa noite.
Ao primeiro sinal de dia, levantei-me rapidamente, peguei na folha, e dirigi-me à torre. A princesa lá estava como em todos os dias, parecendo não me ver, mas tudo iluminando de tanto que os seus olhos brilhavam.
Pensei falar, cantar, até mesmo trepar a ridícula torre que podia cair com um sopro fraco e desinspirado.
Aproximei-me o mais que pude e perguntei-lhe se queria vir comigo!
Ela sorriu e respondeu:
- Quando todas as folhas do meu cabelo chegarem ao lago!
Subi para o meu cavalo, ficando quase à altura da varanda, que parecia ainda mais pequena. Entreguei-lhe a folha que tinha guardado, para que os nossos dedos se tocassem, mesmo que ao de leve. Despedi-me e parti.
Olhei uma última vez para trás e reparei que o lago estava mais preenchido do que tinha percebido. Não consegui decidir se voltaria aquele lugar…

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

A Montanha da Lua...

“Diz a lenda que a Montanha da Lua pode aparecer em qualquer lugar. No meio de um deserto ou no fundo do lago mais negro. A sua escalada obriga-nos a enormes quantidades de ar e a descida ao esquecimento de qualquer cuidado.”

Uma voz rouca sempre intriga quem se preocupa com pormenores pequenos e sem razão para existirem. Ao ouvi-la perguntamos se será real ou um pouco fingida na sua nascença. Mas ela não tinha esse tipo de voz. Era calma, embora tivesse abandonado um som cristalino que agora entendo ser mais sonhado que possível.
Tinham passado três semanas até ganhar coragem. Tinha passado muito mais enquanto imaginava os sorrisos que poderiam despertar.
Naquela tarde, já cansado, consegui por fim chegar perto dela. Uma janela tinha aberto para que o meu cuidado pudesse guardar e finalmente caminhei os últimos passos. Não senti a montanha...e também não a sinto agora.
Mas ela existe e subir ao topo não seria tarefa fácil. É muito frustrante quando vemos uma linda paisagem que pensamos poder fazer parte da vista do nosso quarto. E quando finalmente espreitamos existe uma enorme montanha branca que tapa o horizonte. Chamam-lhe a Montanha da Lua, porque a sua sombra não deixa passar a luz do dia e nos faz encolher, sentirmo-nos sem força para continuar, quase desistindo.
Não é essa a opção pois a escolha foi criada artificialmente, sem certezas e com muitas dúvidas de autenticidade.

Resta-me a respiração forte e uma longa subida. Depois do seu cume há uma descida calma e sem mais perigos...

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

"O meu outro eu"...



Antigamente chamava-me miak e escrevia no "Duende Feliz".

http://oduendefeliz.blogspot.com/

Passa por lá, por favor.

quinta-feira, janeiro 18, 2007

Um dia...

Um dia, um rapaz passeava junto ao mar.
Era Primavera e o ar salgado deixava-lhe um sorriso na face...
Sem perceber caminhou durante séculos e se a terra fosse mesmo redonda por certo não ia parar.

Mas à medida que a Lua murmurava ao Sol para se despachar, começou a levantar-se uma brisa...
Não era uma brisa normal. Parecia que falava baixinho.
Falava com ele mas sem palavras que pudesse ouvir.
Mesmo assim sentia algo...arrepios, medo, e quase fugiu correndo...

Tinha que ser forte....
Nem com todos a brisa fala...e já que o escolhera, devia tentar ouvir.
Quase sem pensar, entrou pela maré...
Acariciou as ondas envergonhadas e sorriu para o mar...

O mar sorriu também, para depois soltar uma enorme gargalhada que engoliu o rapaz...
Num turbilhão de água sentiu o fôlego a fugir, e gritou pelo ar que lhe era roubado...

Por segundos pensou que dormiria...para acordar num mundo distante, perto de uma sereia.
Com conchas coloridas e mantos verdes de saudade...

Mas não!!
Apenas rebolou na água morna...
Bebeu litros, espirrou sofrimento...
Durante uma hora pontapeou a morte sem chorar uma lágrima...

Saiu voando então...
Aterrou com estrondo na areia, e ficou parado a olhar o mar...
As conchas eram brancas por toda a parte...
Não havia sereia, nem um mundo diferente...

Escolheu por fim a sua realidade, porque se o senhor mar não o aceitou, alguma razão devia ter...

sábado, janeiro 13, 2007

A lucidez...

Tentem ficar lúcidos! Tentem fazê-lo no meio da raiva latente que só não deixo chegar porque me faz sofrer...
Tentem ser pais e amigos e empregados e deixar que a vida não se transforme numa confusão de porquês, de medos e ânsias e meios caminhos sempre andados em direcção ao disparate. Como evitar começar a esmurrar todas as paredes e outras caras, derreter à pancada aqueles idiotas sorrisos que me agoniam durante parte do dia, aquela em que não estou só. Porque razão não há de aparecer não uma princesa, que dessas fugirei, mas uma simples rapariga de um sonho mais calmo e lúcido? Porque a tranquilidade é tão escassa e não permanece anos de seguida?

terça-feira, janeiro 09, 2007

Uma ilusão...

Alguém me disse um dia que a paixão não passa de uma ilusão. Por ser verdade, é a mais bela das sensações!

Tinha conseguido encontrar alguma calma. Não era constante. Por vezes lutava por fugir-me. Mas por agora sossegava no presente.
E então ela apareceu! Em noite fria e sem expectativas, precisei de três segundos para me apaixonar, e das restantes horas para ter a certeza.
É fácil falar com quem amamos ou pelo menos para mim assim foi. Não planeei conversas ou temas originais. Saboreei a paz em não ter que inventar personagens ou estados de alma, porque na verdade era feliz. Fugi a ébano imaginado e a alcóol que não precisava, para manter intactos sentidos e olhares. Não programei despedidas e deixei que a noite terminasse sem que pudesse saber.
Voltei para casa só com incertezas e tentando não me iludir, mas sabendo que o faria. Decidi permitir um sonho moderado, que me fizesse sorrir, mas me impedisse de chorar. Quando estamos sós durante um tempo, interrogamos o coração. Queremos saber se está bem, se necessita de algo. Dobramos o queixo e falamos para baixo, quase em silêncio. O peito que o guarda amortece as palavras que questionam fragilidades. Será a solidão, mesmo que confortável e consentida, um qualquer antídoto da razão?
Tudo parecia encaixar. Uma harmonia suave que sonhei pudesse dormir a meu lado.
Então deixei impulsos, desta vez contidos, levarem-me à escrita. Palavras simples que possam abraçar a tecnologia de um email, com o romantismo perdido em transferências de dados. Poucas linhas para que algumas mais fossem enviadas, acompanhadas de banda sonora quase original.
A partir daí o sonho mudou. Passou a ser com a resposta e o devolver de empatia, já então questionada. Impossível! Não podia ser caso isolado. Para estas mãos existem outras que esperam…que têm de sentir o mesmo, a tão grande vontade de apertar, de finalmente encontrar.
Esperei três dias, evitando pensar muito, mas deixando-me partir em outras tantas viagens.
A resposta chegou enfim! Respirei fundo e preparei-me para abrir a mensagem. Parei uns segundos ao notar o título – Re: Olá…
Abri os olhos e li então o seu conteúdo. Dizia apenas:

- Quem és tu?


Voltei a fechar os olhos…e sorri sozinho.

segunda-feira, janeiro 01, 2007

O mesmo que eu...

“Um violino traz-me sempre a tua memória. Para pensar à chuva, quando me afogar em muitos risos.”

Era assim que esta linda mulher encerrava pensamentos antes de dormir. Lembrou uma última vez os seus olhos, antes de cair num sono profundo. Sonhou por séculos, questionando se estaria só...se o que entendeu era igual ao reflexo de um espelho pouco mágico e gasto pelo tempo.

Eram lindos os seus sonhos. Neles as mãos eram tudo. Com elas falava e escrevia, lembravam um toque delicado e não tinha medo de apertar. Afinal era o toque que mais recordaria.
Não tinha passado muito tempo! Achava ainda sentir o seu cheiro. Queria dormir...mas não podia.

Ele sorria muito...não parava de recordar cada instante...e sorria mais.
Felicidades construídas de ilusões tão doces e frágeis, mas sem obrigação de serem verdadeiras. Existiriam para sempre.
Lembrou também o toque, roubado e consentido...recordou os sons e tudo, que eram de uma íntima suavidade.

Em outras alturas desesperara por não saber melhor, por querer demais. Agora sabia mais e vivia menos, mas sonhava de forma igual.

Ali ficaram tantos segundos, em pensamentos cruzados e distantes na cidade. Lembraram ao mesmo tempo, a incerteza que não terminou. Quando fechavam os olhos viam-se a voar outra vez...as mãos juntas.

“Às vezes não é fácil encontrar a calma que me traz de volta ao mundo. Mesmo que sem perceber onde parei, onde amei, onde teria a certeza de que escreverias...o mesmo que eu...”

terça-feira, dezembro 26, 2006

A cidade...

Mais que um sonho, gostava de poder chorar nas tuas mãos. Impedir um destino sem sentido de levar a tua luz.
Naquele dia sabia já que te amaria, mesmo sem ver e sentir, mesmo sem ouvir rir a tua voz e perceber o embalar.

Cheguei numa tarde em que a Primavera saía sem ruído, em que o sono tomava conta das ruas. Acho que sofri por não ouvir canto ou sapateados.

Lembrei o teu sorriso e como me lembras uma Lua pouco vista e usada. Como encontrei o teu corpo de aromas, mas não consegui tocar-lhe por medo e sem vontade de lutar.

É numa lágrima que teima em não sair, que encontro forças para correr todas as ruas procurando um sentido, uma resposta. Porque dias mais agitados me tiraram a capacidade de perceber sentimentos e perguntas. Foi em becos escuros e depois ruas claras que ofegante corri, caí e não pude parar sem procurar tão doce bailarina. É de raiva que antecipo um sentimento de recordação amarga e bela, de quem não chegou a perceber o que sentia. Fui por bares e praças, pagando a carroças e cavalos para me seguirem por estreitos e antigos caminhos, onde sentia a tua presença.

Já tarde e tão cansado, perdi a esperança de forma pouco normal, sem esgrimir, sem raiva e sem instinto.
Esperei então encontrar-te por magia, por acaso, sem que precisasse de voar, de jogar, de criar lindos espectáculos de magia soberana e quente.

O sonho desabou e nem aroma, nem pele, nem memória de um simples abraço, que tanto queria, que tanto desejei, para que nesta gaveta ficasse gravado mais um pedaço de mim.

Falta coragem, falta ímpeto e a calma recente não ajuda em momentos de normal ansiedade, já não igual. Agora tudo é mais lento e percebo que vêem brisas em vez de ventos e elas pouco empurram.

Fica-me a sensação de que a cidade esperou por mim tantos anos, e ficará em sua calma de Sul, estendendo lençóis brancos nas pequenas varandas.

Abraça-me linda cidade, que esqueço por não ver. Se me tirares a vida leva-a contigo, devendo à pele e sua memória uma recordação antiga e sem espaço.

segunda-feira, dezembro 18, 2006

O beijo...

Já era tarde quando apareceu...a luz ficava menor e quase não podia vê-la. Parecia que se escondia da vida em cada sorriso.
Era uma Princesa sem o saber, de olhos tão verdes mas com medo.
Vinha por um caminho estreito dançando e acho que não eram flores que caiam do cabelo. Deviam ser pequenas fadas que esvoaçavam. Era estranho.
Eu ali fiquei à espera. De nada valia apressar ou ansiar. O caminho só tinha um sentido e terminava à minha beira. Podia assim respirar tranquilo, mas com o coração a bater. Porque não é todos os dias que tal acontece. Que pensam? É um momento de suspiros.
E depois chegou! Os olhos eram mais verdes e as fadas tinham fugido.
Não falava. E a calma começou a partir. Não sei dançar, pensei. Não sei esperar. Que podia fazer?
Ela sim dançou. À minha volta...atrás de mim...mas sempre sorrindo. Era bom que começassem a chover feitiços. Mas tal não aconteceu.
Ali ficámos. Num estado de sono e sonho...ouvindo violinos e lendas.
Até que...até que devagar nos olhámos, parados e a respirar...juntando o peito num só batimento...encostando os lábios sem perceber...num único beijo.

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Num qualquer dia...

Num qualquer dia olhamos para quem ainda não se tinha cruzado com a nossa vida. E então ficamos a sorrir, a olhar, a pensar num colo eterno, numa aventura doce e terna...dormindo, sonhando...
Num acto impulsivo levantamos voo, até quase cair...com o coração a tremer...

Num qualquer dia nos perdemos. Ficamos desprendidos de toda a lucidez e abraçamos os disparates com ternura, mas com tanto empenho!
Não nos é cara a ideia de tentar voltar a sonhar, com calma…e sem vontade de cair.

Ao som de um qualquer tabaco percebi que tinha voltado a mim. E escrevi…
Uma morena de tempestades entrou na minha vida numa tarde com pintas de Primavera.

terça-feira, dezembro 12, 2006

O salto...

Alguém apareceu sem aviso na minha vida!
Gerando, empatias, criando risos largos e abertos. Despertando sonhos e desejos escondidos de os realizar.
Alguém teve a capacidade de me devolver condição humana, de Duende e de Mágico e de quem não pode equilibrar em baixo de um só pé tão fina e doce linha de algodão.
Rapidamente podia cair, sem certeza de qual o lado a receber tão estrondosa queda. Precipitadamente teria que escolher sem ponderar, sonhar…e céus…muito menos chorar.
Na crença milenar, quando morremos temos que atravessar uma ponte fina e afiada como o gume de uma espada. Se o conseguirmos chegamos ao Paraíso…
Receio não os ter…aos Paraísos. Tenho medo de querer viver demais, de pedir demais, de berrar para que os meus brinquedos não desapareçam.
Quero continuar com a ilusão de conseguir suportar tanta vida e sentimento, tanta culpa e sorrisos doces…

Resta-me olhar para dentro, para o fim de uma velha ponte rodeada de breu, que se partiu a meio indicando um vácuo aterrador. Tudo se resume a uma pequena interrogação, traduzida num enorme salto.

sexta-feira, dezembro 01, 2006

A discussão...

Naquela noite já não podia caminhar mais. Não sei se eram dores ou movimentos tão precários que me faziam quase cambalear.
A conversa tinha sido extenuante. Susana era uma mulher forte, que deixava de lado qualquer réstia de carinho quando discutia. Tal acontecia mesmo com assuntos de menor importância. Mas hoje tinha sido diferente. Aparentemente tinha sido descoberto!
Há cerca de dois meses que mantinha um relacionamento com outra mulher. Mais bonita, sincera e tão parecida com a Susana de há cinco anos atrás. Ela tinha mudado. Aos meus olhos ia-se tornando numa mulherzinha que me obrigava a trai-la.
A compensação chegou numa linda mulher que conheci por acaso. Passei os últimos tempos tentando, em vão, decidir-me por fazer a troca que desejava e temia.
Quase desisti até hoje de manhã quando recebi um telefonema. Susana parecia irritada. Quis saber onde andava, porque não atendera a primeira chamada, acompanhando as perguntas com sonoros risos cínicos e o repetir da mesma expressão – Tu não me conheces!
Confesso que cheguei a ter medo. É estranho e impressionante o medo a que as mulheres nos conseguem submeter. Na verdade, penso que o mérito é profundamente nosso e reside na consciência da incapacidade em nos libertarmos. Somos quantas vezes incapazes de largar a maternidade, a sua protecção projectada em mulheres e amantes. De ficarmos sós perdendo a luta por um colo que aspiramos para um dia desprezar.
Já perto da hora de almoço chegou, já irritada, perto de mim. O beijo foi como um arrancar da confissão final e o silêncio seguinte uma verdadeira tortura. Podia ver as suas veias a latejar enquanto engrossavam, preparando-se para me atacar.
Sem aguentar mais, desisti e comecei a falar.
- Susana! Sei que não me vais perdoar e que o que fiz não pode ter justificação. Mas por favor ouve-me um pouco!
Ela respirou com pouca calma.
- Não vai adiantar muito, pois a minha capacidade de te ouvir desapareceu há séculos. Mas fala!
- Eu não queria magoar-te. Sei que te vão parecer palavras gastas e sem sentido, mas tens que acreditar em mim. Não têm sido tempos fáceis e embora não me atreva a negar as culpas, é certo que existem atenuantes. Eu ando muito cansado, pressionado no meu emprego, infeliz no que a vida me tem dado. Podes não entender, mas é difícil para um homem. Não podemos aguentar tanta tradição cruel, que nos empurra a cada momento para acções e pensamentos tão errados. Quase choro quando penso no teu sofrimento e outras vezes esqueço-me de o impedir. Podes agredir-me e continuarei a amar-te para todo o sempre. Reconheço com vergonha o lugar comum e juro que não significou nada para mim. Eu amo-te!
- Ouviste-me? Eu amo-te demais!
Ela pareceu acordar nesse instante de um pesadelo.
- Não penses que me tratas como uma qualquer. Por tua culpa jantei sozinha com os teus amigos. É a última vez que aturo os teus esquecimentos. Vá, despacha-te com esse café. Ainda temos duas casas para ver hoje.

Era já tarde e ainda caminhava atrás dela. Rezava por encontrar outro caminho!

sábado, novembro 25, 2006

O casamento...

Já devia ser tarde quando cheguei à praça onde combinei encontrar-me com ela. Maria era uma daquelas mulheres que amamos com vontade de esganar, apertando o pescoço com todas as nossas forças. Precisava de me acalmar. Afinal ia pedi-la em casamento.
Ao longe reconhecia a sua figura. Era gorda! Na realidade não era, mas sempre desejei que fosse. Nada me daria mais prazer que a chamar de gorda e causar-lhe um décimo de dúvida. Daquelas que enviam com brutalidade as mulheres para os ginásios e dolorosas dietas. Com muito sofrimento à mistura.
Mas não! Sorrindo com o corpo ela avançava confiante. E eu pensava – Vou ter que casar com esta puta!
Felizmente a praça era enorme e dava tempo para respirar, limpar o suor de Inverno e pensar um pouco. Mesmo à distância o volume de uns seios irritantemente verdadeiros, deixava-me em delírio. Na primeira noite em que pude vê-los, tocar a sua pele tão macia, quase tive um orgasmo ainda vestido e só por pequenas carícias. O sexo era magnifico! Nunca me sentira assim na vida. A forma como encaixávamos era perfeita. A pele ia escorregando lentamente, resistindo apenas o suficiente para que o prazer fosse levado ao extremo.
Estava agora perto de mim. Os dentes já brilhavam naquela arrogância idiota que tanto me enervava. Se os pudesse partir acidentalmente! Mas não era possível, porque do meu sonho fazia parte uma cadeira voando...
Reparei que parou para cheirar uma rosa. Era muito parecida com a que tinha no meu quarto, oferecida há uns dias. Só um amor verdadeiro poderia levar uma flor numa tão longa jornada de resistência. Maria tinha-me oferecido a rosa sem qualquer razão. Apenas com um beijo suave e terno.
Ela era linda na forma como cuidava de mim, como podia ser amiga e amante e me acalmava nos meus problemas e tantos medos.
As suas mãos gostavam de pegar nos meus dedos e ficar horas a brincar com os meus pensamentos. Eram parecidas com as da mãe, a quem partiria não só os ossos das mãos...
Quem pensavam que eram? Como não perceber a minha angústia. O riso não era forma de lidar com a diferença e levava-me à loucura. Ela estava próximo! E eu arranhava, furiosamente apaixonado, a mesa da esplanada que me acolhia.
Restavam poucos metros, para que esta bruxa encantadora me desse o beijo que só podia odiar. Um beijo de lábios rosa e muito delicados. Eram perfeitos na forma como cobriam o meu corpo até ao amanhecer e atingiam a perfeita arte do carinho ao tocar na face de uma criança ou de um velhinho doente. Doce Maria...
De olhos negros chegou junto a mim. Beijou-me longamente para que pudesse sentir o seu perfume. Meio enfeitiçado ouvi dizer – Vamos querido?
- Sim Maria, podemos ir. A tua mãe já deve estar à espera.
- Que me querias dizer? Parecias preocupado ao telefone.
Enquanto descíamos para a rua junto ao rio, de mãos dadas, respondi calmamente.

- Daqui a pouco já falamos. Vamos que estamos atrasados.

terça-feira, novembro 21, 2006

O chupão...

Sempre fui fiel! Pelo menos até ao dia em fui posto à prova. E então deslizei com estrondo!
Penso, talvez em ilegítima defesa, que infiel não é quem nunca traiu o cônjuge, mas sim aquele que, perante essa possibilidade, não consegue resistir. Ou, recorrendo à teoria do meu avô, «fiel é o marido que traindo a mulher, não a troca pela amante»!! Ele há vários tipos de abordagens e esta pelo menos permite que eu e os meus irmãos pudéssemos chegar a este mundo. Mas voltemos ao principal.
Passaram mais de dois meses, nos quais me aproximei dela e percebi com total consciência que esta não seria uma simples amizade de trabalho. Mas o meu ego estava mais confortável do que nunca e a inveja estampada nos olhos de alguns, faziam de cada dia um triunfo pessoal.
Até que uma tarde, quase sem saber como, no meio de pequenas mentiras, finalmente me espalhei ao comprido. E o meu pesadelo começou! Ao colocar a gravata frente a um espelho, quase chorei ao ver o meu pescoço. Tinha um chupão! E não era um chupão qualquer. Bem visível, já com o sangue brutalmente pisado, aparecia na parte direita do meu pescoço e tinha pelo menos quatro centímetros de diâmetro. Respirei fundo. Tinha que manter a calma!
Acabei de me vestir, com uma última réstia de esperança, para logo perceber que “ele” estava bem a cima do colarinho da camisa e em contraste com esta parecia ainda mais vivo e saudável. Percebi que não iria embora facilmente.
Estávamos em pleno Agosto, com médias de 38 graus, pelo que cachecóis e gola alta foram de imediato riscados da estratégia que, entretanto, começara a delinear.
- O que é que eu faço?
Corri para a minha "companheira" e responsável pela criação da obra de arte e apontei para o meu pescoço. Ela sorriu e disse - Olha, tens um chupão!
Durante cerca de trinta segundos o meu sangue ferveu e só graças a um inesperado auto-controlo as minhas mãos se mantiveram afastadas do seu pescoço, que por solidariedade por certo se tornaria, devido à falta de oxigénio, ainda mais vermelho que o meu, assim como o seu minúsculo cérebro alojado nas proximidades.
Uma vez mais inspirei com calma e tentei descontrair.
Ao ver-me entregue ao meu destino, saí rapidamente para a rua, pensando numa saída para este beco escuro e sem aparente saída. O que faria uma mulher no meu lugar?
E foi então que a passagem secreta se abriu mesmo à minha frente! Do outro lado da rua estava uma daquelas lojas onde só entro no Natal para compras desesperadas, e onde residia, pensei eu, a minha salvação. Maquilhagem!
Se esta arte ancestral pode esconder quase tudo, incluído décadas inteiras não assumidas, seria por certo capaz de anular um simples chupão.
Corri para a porta e entrei com um sonoro - Boa tarde!
Quase de imediato me arrependi de tão imbecil acto pois as empregadas, que eram três numa loja deserta, convergiram para o balcão à minha frente para, irritantemente, perguntarem em coro. - Em que podemos ajudar?
Com todas a veias do meu corpo a latejar, perguntei de forma directa. - Como é que posso disfarçar isto? E ao mesmo tempo apontei para o meu pescoço.
Não sei se já entraram numa loja destas, mas as empregadas estão por norma bem arranjadas, com grandes doses de maquilhagem e perfume, como se elas próprias fossem um expositor móvel dos produtos que vendem. A mais alta e que estava no meio das outras exclamou. - Isso é um chupão!
Impressionado com tamanha capacidade de observação, limitei-me a acenar com a cabeça afirmativamente.
- E como é que o senhor arranjou isso? Perguntou a mulher, que começava a esboçar um pequeno sorriso.
- Acabei de lhe dizer que quero disfarçar com maquilhagem, o chupão enorme que se alojou no meu pescoço. Como é que acha que eu arranjei isto?
A mulher olhou-me de alto a baixo e respondeu.
- Vamos ver o que se pode fazer. Desapareceu com as colegas para baixo do balcão durante uns segundos, para logo voltarem com a maior colecção de recipientes que vira em toda a minha vida. Quase que corri para um espelho, temendo que existissem outros chupões ou marcas visíveis, mas a diversidade de produtos expostos na minha frente foi de pronto justificada.
- Não sabemos qual a base que se adapta melhor à sua cor de pele.
- A base?
- Sim, é uma espécie de creme que as senhoras usam supostamente para servir de suporte à maquilhagem. De facto o que faz é preencher as imperfeições e desníveis do rosto, cobrindo igualmente manchas ou áreas com deficiente pigmentação.
Fiquei em pânico! Por momentos, pensei que não sobreviveria. Mas com o passar dos minutos uma alegria imensa invadiu o meu coração que podia agora retomar o seu ritmo normal. Era uma autêntica magia. O chupão desaparecera por completo. No seu lugar, uma cópia exacta do que fora um dia a pele do meu pescoço. E por incrível que pareça ninguém diria que estava maquilhado, tal era a perfeição da intervenção. Quase beijei aquelas lindas mulheres que me salvaram e depois de uma simpática gratificação, fui para casa.
A minha mulher já tinha chegado e como eu previra não notou qualquer diferença no meu pescoço. Elogiou, inclusive a minha gravata, oferecida pela minha sogra e que estava perigosamente perto da prova do crime. Mas o segredo manteve-se inviolável. Agora podia descansar!
E foi então que uma tonelada de ignorância e estupidez acumuladas pelo sexo masculino durante séculos e séculos, desabaram estrondosamente nos meus ombros. Atordoado pela descompressão e imerso num estado de felicidade absoluto, segui um hábito antigo que sempre cumpria ao chegar a casa. Tomar banho!
Deve ter sido quando a água no fundo da banheira começou a ficar castanha, que percebi a dimensão do meu acto e caí de joelhos já sem pânico, mas envolto apenas num enorme sentimento que misturava tristeza com a total ausência de inteligência.
Vesti o roupão e dirigi-me à sala, preparado para o pior. Estava exausto e a capacidade para mentir abandonara-me por completo.
A minha mulher estava sentada a ver televisão. Sentei-me perto dela e esperei. Restava-me agora, a táctica suprema. O improviso!
Ela olhou para mim e de imediato percebeu a presença alienígena no meu pescoço. Então disse. - Não tinha percebido que tinhas um chupão. A noite de ontem foi realmente especial. Há uns anos que não te ouvia gritar de prazer!
Deu-me um beijo na testa e desapareceu para a cozinha para fazer o jantar.Fiquei uns minutos perdido, em silêncio, até que as memórias começaram a assentar. Na noite passada tínhamos feito amor, ou sexo, ou lá o que se chama quando um dos parceiros adormece em plena, mas pouca acção. O grito não tinha sido de prazer, mas de susto e dor, por acordar com uma enorme dentada no pescoço. Saímos cedo, sem trocar um único olhar e eu passara a manhã fora do escritório e sem acesso a espelhos ou comentários inconvenientes. A tarde, essa começou em ambiente pouco iluminado e terminaria na mais completa escuridão.

sábado, novembro 18, 2006

Eu...

Deus que não existe que me perdoe de todo o mal que faço a mim próprio e a quem amo sem temer...
A quem acredita e apesar de errar, sempre guardará memória estranha de miúdo tolo que atravessa magia e ventos em vidas calmas.
Nobres olhos de candura capazes de chorar pelos que o fazem sem controlo e não são capazes de falar.
Mensagens disformes materializam a minha ansiedade em viver sem querer esperar. Sem dar ao tempo o seu lugar eterno no nosso equilíbrio e incapaz de perceber o erro de não o fazer.
Não sinto ainda forças para mudar, não sem antes te amar, te apertar em algo que chamo sem nome e grito sem me ouvir. Confunde-me não saber se gosto ou odeio o meu destino de respirar o teu peito.
Quero-te e quero sentir a tua voz, apertando a minha consciência, mas acalmando a minha ânsia.

segunda-feira, novembro 13, 2006

Meu anjo... (pensando)

Um dia soube que chegaria um anjo à minha beira...para acalmar os sentidos em palpitação e quase descontrolo.
Chegou no toque de uma mão jovem e suave que não apertou mas deixou passar pequenos arrepios, que apesar de tudo eram calmos.
Anjos são claros diferentes desta pele, mais morena e linda no seu brilho.
Mesmo sem ouvir, a voz do seu canto já invade o meu espírito porque a imagino em cada momento.
É estranho que me tenha feito parar no turbilhão de onde teimo não querer sair. É mais estranho por sentir que é inatingível mesmo no toque, talvez só podendo perceber o meu íntimo.
Passei...e ainda vou passar muitos anos à procura de coisas que não existem e são uma busca que por vezes força as lágrimas ou apertos mais brutais.
Alguém pode ter roubado a paz do meu futuro só para me obrigar a caminhar por mais tempo como se precisasse de uma longa espada para encontrar a saída.
Serão apenas os momentos de solidão a trazerem-me descanso? Devem ter o seu papel predestinado, pois os mesmos conseguem por breves segundos diminuir a ansiedade e estas tão estranhas lutas.

quinta-feira, novembro 09, 2006

O esquilinho...

Era uma vez um pequeno esquilo que saiu momentaneamente de uma história para crianças, para fumar um cigarro. Ao chegar cá fora encontrou um coelhinho.
Espantado, perguntou.
- Que fazes aqui?
- Vim fumar um cigarro.
- E porque não entras outra vez?
O coelhinho suspirou.
- Por causa do cheiro a tabaco.
- Ah. Pois!
Como é que te chamas?
- Coelhinho Rabino. E tu?
- Esquilinho Manel.
Os dois ficaram um pouco em silêncio.
- Devemos ter os nomes mais estúpidos que existem.
- Pois é! Mas o autor desta história já morreu.
- Sim…Já não podemos assassiná-lo. Idiota!
Os dois riram descontraidamente, até o esquilo perguntar.
- Queres mais um cigarro?
- Sim, pode ser obrigado.
- Não sei porque é que vimos fumar. Não é como se tivéssemos acabado de…Bem, tu sabes.
- Sei o quê?
O esquilo corou um pouco.
- Vá não gozes comigo. Tás a perceber muito bem…o tradicional cigarrinho depois de….
- Depois de quê?
- Olha, não sejas parvo. Depois de fazer amor!
O coelhinho sorriu!
Tu é que és rabino! Fazer amor? Numa história para crianças? Quando foi a tua última vez?
- Bom, ainda estou à espera! Mas de uma coisa tenho a certeza!
- Do quê?
- Quando acontecer vou fumar um cigarro.
- Ah, eu também! Nem podia ser de outra forma.
- Claro! Ficava incompleto!
- Pois é…
- É mesmo. E então? Perguntou o esquilinho agora mais sério.
- Que queres tu?
- Achas que era de experimentarmos?
- Tu querias?
O esquilinho pensou um pouco.
- Acho que não! E tu?
- Também não. E já não tenho cigarros.
- Pois! Vamos voltar a entrar?

- Sim…É melhor!

sexta-feira, novembro 03, 2006

O super herói...

Hoje de manhã, enquanto guiava, pareceu-me ver um minúsculo ponto negro no horizonte, deslocando-se a grande velocidade.
Durante uns minutos a imagem permaneceu igual, indicando que o objecto voador, na altura não identificado, estava a uma distância razoável.
O normal seria tratar-se de um avião que voava ainda longe, mas a baixa altitude, pelo que devia ser um qualquer tipo de aparelho militar.
Era muito cedo e eu viajava sozinho na estrada que se estendia por uma enorme planície, onde a visibilidade era perfeita e o horizonte quase sem fim.
Aos poucos o objecto começou a aproximar-se. Comecei por reparar que não estava tão longe como inicialmente julgara, devendo-se esta ilusão, ao facto de ele ser, na realidade, bastante mais pequeno do que imaginara.
Foi então, com uma mistura de horror e deslumbramento, que percebi que não era um avião ou qualquer outra máquina voadora. O objecto tinha acelerado bruscamente, ao mesmo tempo que alterava a sua rota de voo, em direcção a mim. Então, por mais que me beliscasse, consegui perceber uma figura humanóide, rasgando os céus de braços estendidos. E então pensei. É um super-herói!
Travei instantaneamente e fiquei parado dentro do automóvel, observando. Não estava nervoso nem assustado. Apenas muito ansioso.
A figura voou em círculos à minha volta, para então começar a descer lentamente na minha direcção e pousar com suavidade perto do meu carro.
Muito devagar, para não demonstrar agressividade, olhei então para ela. Devo ter gritado, mas só em pensamentos, porque o que vi me impediu de sequer respirar durante muitos segundos.
Na realidade, seria o super-herói menos convencional que jamais existira e nem com uma crise nas infinitas terras, nasceria um ser tão estranho.
Era até difícil olhar para ele. Não era muito alto, teria cerca de 1,60m, mas formava uma enorme montanha de músculos aprisionados com dificuldade na pele, de tom rosado e com um líquido que parecia suor escorrendo permanentemente e formando uma pequena poça junto aos seus pés, que evaporava no entanto com grande rapidez. A cobrir o corpo tinha um colete e umas calças de ar rude, mas que pareciam resistentes e em muito bom estado. Estava descalço, assentando em pés muito largos para suportar o seu imenso peso. As mãos, estranhamente pequenas e delicadas, eram a última semelhança visível com um ser humano, porque em cima de um pescoço curto e ameaçador, a cabeça e a face eram quase impossíveis de descrever.
Tinha uma espécie de focinho e uma boca enorme com dentes que lutavam por um espaço e de onde saía também um líquido viscoso e transparente que se misturava com o suor do seu corpo. Os olhos ficavam mais recuados e não eram muito grandes. Guardavam uma expressão de calma e de uma agressividade perfeitamente controlada. No alto, um pequeno tufo de cabelo castanho, que parecia negligenciado e umas orelhas muito pontiagudas com um rosa púrpura que pulsava em veias grossas e serpenteantes.
Fiquei em silêncio, sem sair do carro e de cabeça baixa, esperando um ataque brutal à minha vida. Então, ouvi-o a agarrar no puxador da porta e com gentileza, arrancar o metal que rasgou como se fosse papel. Espreitou para dentro e olhou nos meus olhos, para logo estender os braços e me puxar para fora.
Levantou-me no ar, bem a cima da sua cabeça, ao mesmo tempo que duas lágrimas faziam o percurso inverso. Depois, baixou-me lentamente e colocou-me frente a ele com as cabeças quase juntas. O seu odor, que agora podia sentir, não era desagradável e parecia nascer do abundante líquido que o cobria.
Aquele que eu chamara de super-herói juntou então a sua boca à minha e prolongou algo que não posso chamar de beijo, pela dor que me causaria fazê-lo.
Durante aqueles minutos, senti o líquido viscoso a entrar na minha garganta, invadindo-me e emprestando o odor que já me era familiar.
Caí no chão sem reacção e não quis observá-lo a levantar voo e desaparecer nos céus.
Chorei compulsivamente durante duas horas, sem capacidade para sequer definir sentimentos que, apesar do esforço, nada tinham a ver com repulsa ou com o mais simples dos medos.
Naquela manhã nasci outra vez, para um Mundo tão novo e onde teria que reaprender a andar.
Aos poucos levantei-me e retomei o meu caminho, quase gelado pelo vento que entrava onde outrora existira uma porta.
De regresso a casa lembrava-me distintamente de todos os pensamentos que ele me ofereceu sem um único som. Sempre soubera da sua existência! Desde sempre me acompanhou.Hoje posso vê-lo em cada minuto. Já não é costume voar. Vem normalmente num aparelho parecido com uma moto espacial, com muitos brilhantes e de aspecto veloz. Estaremos juntos até ao dia em que morrer, quando a sua protecção não fizer mais sentido!

O bilhete...

Um dia ao chegar a casa, reparei num pedaço de papel preso no limpa pára-brisas de um carro, parado mesmo em frente ao meu prédio. O carro pertence a uma rapariga que mora na minha rua e que secretamente admiro há algum tempo. Não tentem admirar ou platonicamente motivarem um qualquer interesse por alguém que não conhecem! É algo profundamente humilhante.
Mas aquele simples bilhete arrastou toda a minha atenção e com ela muita da trémula paz de espírito que sempre procuro. Chovia, e até em sonhos nevava e ele resistia. Nada parecia querer arrancar aquela folha branca do seu abrigo. Comecei a desenhar um plano que me levaria a conhecer o conteúdo da missiva. Seria um admirador rival? Um aviso de um vizinho, alguma coisa que em sonhos eu próprio escrevera e perdera da memória para sempre?
O dia acordou cinzento, mas à medida que despertava começou a ficar mais claro e alegre. Em breve pude ver um lindo céu azul que me acalmou. Dirigi-me devagar ao carro onde o bilhete ainda esvoaçava. Era estranha a sensação de caminhar para um segredo que inventara por não existir, mas que me acompanhara durante as noites habituais. As mãos estavam secas e não havia rasto de nervosismo na minha tarefa. Ao chegar perto do carro, fiquei um pouco parado, observando. O papel, já um pouco enrugado, ali continuava tornando impossível desistir.
Com muito cuidado retirei-o do vidro para o guardar no bolso direito do casaco. Depois corri, fugindo de nada.
Entrei em casa e agora, já a tremer, desembrulhei a folha onde consegui ler:

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sábado, outubro 28, 2006

Música no coração...

Gostam de música? E de a ouvir bem alto apesar de passar já da meia-noite e de (infelizmente) existirem vizinhos por todo o lado?
Má educação? Talvez, mas ontem a tentação era demasiado grande. A alegria tomava conta de mim e exprimiu-se de forma proporcional no volume com que ouvia música.
Deve ter passado uma meia-hora até que o som estridente da campainha se intrometeu.
Entrei em pânico! Pior que a consciência que me atormentava era ter que enfrentar vizinhos. E pior, vizinhos zangados e com razão.
Ainda pensei em fingir-me morto, ou adormecido, mas reparei que o volume de ruído em minha casa era tal, que a porta de entrada estremecia.
Baixei o som e enfrentei a minha sorte. Cabisbaixo de vergonha abri a porta.

Interrompo a história cujo sentido aparecerá, espero, a seu tempo, para avisar que não estou sob o efeito de quaisquer drogas ao escrevê-la e que não me compete defender a sua veracidade. Para vós deixo essa tarefa.

De volta à porta...Eu não faço sequer ideia de quantos vizinhos tenho e muito menos os identificaria numa sessão de reconhecimento. Diante de mim uma linda rapariga cumprimentou-me delicadamente, ostentando um sorriso estranho que confundia irritação, indignação e ao mesmo tempo uma certa vontade de brincar com a situação.
As suas palavras foram simples.
- Boa noite! Tu estás doido ou apenas alucinado?
Foi então que num acesso de demência e estupidez primária, contestei com brilhantismo.
- É uma pergunta de resposta múltipla?
Antes do sorriso idiota que nascia na minha cara estar completo, levei a maior e mais merecida estalada de toda a minha vida. Por momentos pensei que me saltava um dente, ou que ia ficar a sangrar do lábio.
Ela virou costas e desceu as escadas. Então, a porta em frente abriu-se e o meu vizinho da frente, um simpático velhote, achava eu, saiu para as escadas. Ele já estava a rir quando chegou ao pé de mim. E foi com dificuldade, no meio de tanta gargalhada, que me perguntou já a tossir.
- Precisa de alguma ajuda, meu amigo?
Nem ouviu a resposta, porque voltou de imediato para casa de onde vinham mais risos. A sua mulher ria tanto que tinha as bochechas muito encarnadas e nem conseguia falar.
Foi impossível não esboçar um sorriso, feliz por ter proporcionado ao casal tamanha diversão.
Então, porque a alucinação tem algumas vantagens, tentei emendar o erro cometido. Embrulhei num resto de papel de embrulho, o CD que estava a ouvir e que fora a causa de tanta agitação. Às vezes, para explicarmos a nossas fraquezas, somos obrigados a partilhar a música que invade o coração.
Desci as escadas e na porta onde ela tinha entrado deixei o embrulho pendurado com um pedaço de fita-cola, que também segurava um pequeno papel onde se lia apenas – Desculpa...Mas não consegui resistir...

domingo, outubro 22, 2006

Medo...

Esta história começa num dia perdido em vielas do Bairro Alto, onde dois jovens passeavam.
Ele, João, morria de medo de viver e daquelas sombras que saíam dos becos para o agarrar.
Ela, Maria, tinha o condão de o acalmar, partilhando segredos e sonhos.
Foi precisamente um sonho que os levou até ali.
Com uma câmara de filmar ao ombro, João procurava a luz e locais ideais para esconder a vergonha que já sentia de estar frente a uma objectiva.
Tinham decidido fazer um filme.
Quase em agonia perante os dias que iam passando, João e Maria decidiram concretizar um sonho comum e passaram à acção.
O argumento era simples: Não existia!
Apenas duas pessoas que decidem filmar-se, em situações comuns e outras menos, em busca de um objectivo que ainda desconheciam.
-Olha, vamos começar aqui. Disse João olhando para o cimo de umas escadas, Não eram mais que duas ou três e as paredes em volta estavam sujas e muito pouco atraentes. Ele sempre se irritara com a escolha da parte antiga da cidade para filmar. A maior parte das pessoas raramente vem aqui, pensava. O melhor era escolher avenidas largas e luminosas mas também não o tinha feito.
-Está bem! Disse ela a medo. Quem começa?
-Começamos os dois! Trouxe o tripé a contar com isso.
-Vá, vamos começar.
Sentaram-se nas escadas e começaram a gravar a conversa.
-Foda-se!!!
-Foda-se???? Tás parvo ou quê?
-Que foi? Perguntou João meio a sorrir.
-Decidimos fazer uma obra prima e a primeira palavra que dizes é foda-se??. Vai-te foder tu João Silvestre. Cabrão!
Os dois riram por uns bons dois minutos...As hostilidades tinham começado.
-Isto é uma estupidez. A gente devia ter escrito um argumento. Assim vamos demorar dois anos a acabar isto.
-Qual argumento? Tu és maluca? Só se for aquele livro que andas a escrever desde a Idade Média.
Maria levantou-se furiosa, para logo se sentar de novo.
-Estúpido. Estás a ficar careca.
João riu a bom rir Embora fosse verdade, ainda demoraria uns anos.
-Miúda eu não tenho argumento. Só sei que estou a ficar maluco.
Ela olhou longamente para uns olhos que não escondiam sinceridade.
-Porque estás a dizer isso?
João levantou-se bruscamente e debruçou-se sobre Maria.
-Ontem tive um sonho muito estranho. Acordei assustado e sem ter a certeza de estar acordado.
-Sim? Vá, conta lá! Está bem desculpa. Já percebi que te está a incomodar.
-Olha eu não percebi bem. O sonho era apenas um dia normal em que tudo estava igual, à excepção de pequenos pormenores.
-Quais?
-Aconteciam coisas estranhas. Em certa altura estava a comprar uma revista e uma senhora meteu conversa comigo enquanto esperava para ser atendido. Estava a morrer de tanta seca e constrangimento, com as histórias que ela me forçava a ouvir. De repente fechei os olhos e desejei que desaparecesse. Bum!! Quando os abri ela já não estava lá!
Maria tentou não rir, mas sem sucesso. –Oh meu parvalhão. São as vantagens de um sonho.
-Não estás a perceber. O sonho estava a ser demasiado real e normal. Perante aquele passe de magia, assustei-me e despertei num salto. É com vergonha que te digo que durante uma boa hora tive dúvidas se estava mesmo acordado. Nem o velho truque do beliscão funcionou.
-E agora? Já tens a certeza?
-Sim! Só que o pior estava para vir.
-Ah! Ainda há mais?
-Estúpida. Queres ouvir ou não?
-Vá conta. Estava a brincar.
Ele voltou a sentar-se nas escadas. -Hoje quando vinha ter contigo encontrei uma amiga minha. Aquela por quem tive um fraquinho.
-A do nariz pequenino?
-Oh minha grande besta. O nariz dela não é grande. Ela é que é muito magra.
-Pois! E o Pinóquio era apenas um primo afastado.
-Já acabaste?
-Desculpa. Podes continuar. Esta história ainda vai demorar?
-Se eu te apalpar as mamas prometes que deixas de me gozar?
-Hum. OK! Combinado.
Eu ia a descer para o metro e estava a olhar para trás quando choquei com alguém. Era o Pinóquio!
Os dois riram uns segundos.
-Está bem, pequeno não é. Mas ela é bem gira.
-Bom. Quando reparei quem era fiz aquela cena deprimente que envolve fingir que estou muito surpreendido e contente. Mas de repente, vinda sabe-se lá de onde, comecei a ouvir uma música.
-Uma música?
-Sim, mas só eu é que ouvia. Era a música que eu costumava ouvir quando estava apaixonado por ela.
-Não sei se vomito ou se fico curiosa. Mas de onde vinha a música?
-Já alguma vez elogiei a tua capacidade de observação? Já te disse que não sei! Pelos vistos só eu é que ouvia. Acho que vinha de dentro da minha cabeça. É como se a minha vida passasse a ter banda sonora.
-Foi só dessa vez?
-Não. Agora é a toda hora.
-E só tu é que ouves? Perguntou Maria já meio a rir.
-Não. Às vezes as outras pessoas também ouvem. Isto não pode ser normal. Se fosse só eu, era fácil de explicar. Mas assim...
-Olha, João! Sabes que sou tua amiga e que podes contar comigo, mas confesso que estou um pouco sem palavras. Só tenho uma coisa para te pedir.
-O quê?
-Podias passar uma musiquinha para mim?
-Isso é que é ser amiga. Obrigadinho. E o que queres ouvir? Se calhar o som da minha mão na tua cara?
Já meio irritado, levantou-se e sentou-se algumas vezes tentando acalmar-se.
-Vá lá. Não te zangues comigo. Onde está o sentido de humor?
-Desculpa. Isto está a pôr-me um pouco nervoso.
Passaram poucos segundos em silêncio até que começou a ouvir-se uma música - Singing in the rain. Maria olhou para João preparando-se para uma piada triunfal, quando viu nos olhos dele uma expressão que a deixou pasmada.
-Não me vais dizer que...Vá lá não sejas parvo!!
-É melhor irmos embora. Vai começar a chover.
-Vai o quê?
Subitamente, começaram a cair pequenas gotas de chuva, ao mesmo tempo que um sorriso aparecia e outro se transformava em puro espanto.
-Vá. Temos que ir. A câmara pode estragar-se.
Maria estava como embriagada e apenas conseguiu responder.
-Vamos.
Os dois levantaram-se e foram embora.
-Eu não te disse que não era preciso argumento.

-E agora acredito em ti...

quarta-feira, outubro 18, 2006

O segundo tango...

Voltei como prometera! Numa tarde para que não fosse embalado pela música e enganado, sereno pelo entardecer, cheio de cheiros e mais versos.
Sem a noite todo o lugar parecia diferente. As letras de néon estavam ainda apagadas e o lenço fadista guardado no bolso do sujeito que abriu muito os olhos ao ver-me.
- Senhor! Que prazer em revê-lo. Não mais esqueci esses seus lindos olhos verdes...
Não sei se sorri ou se mordi os lábios para não rir. Irritar-me não seria resposta a tão gentil elogio. Cumprimentei-o com delicadeza e subi as escadas. Não pareceu importar-se por eu entrar ainda de dia e sem suspeita de que alguém me esperava.
De noite as escadas eram um local muito escuro e simples passagem para o interior. Agora, consegui ver um pequeno quintal com um baloiço que não pertencia ali. Era de criança, de uma infância que não existia nesta zona da cidade. Esperei um pouco na entrada, nervoso por não ter um cigarro ou qualquer outra forma de me acalmar.
Lá dentro tudo igual. O dia nunca entrava nesta sala. Aliás, o Sol nem sequer sabia da sua existência e ano após ano ignorava cada recanto cheio de veludo e pesadas cortinas com algum pó.
Mas alguma coisa faltava, como a bailarina que, como esperava, desaparecera sem qualquer memória. Era preciso fechar os olhos, bem sabia! Mas prolonguei ao limite o silêncio, para que o sentisse a falar comigo. Depois sentei-me num banco alto, sem nada para beber e deixei que a música voltasse...
Pela primeira vez na vida dancei sozinho, rodopiando pela alcatifa cor de vinho. Deve ser experiência partilhada pelos mais afortunados, porque passaram breves minutos antes que as lágrimas me escorressem abundantemente. A bailarina voltou então, ainda mais feia e descordenada. Já não tinha chão de madeira antiga e não era só a falta de ruído que transformava o martelar de seus pés num sonho ambíguo e sem sentido.
Toda a cena, desprovida de encanto, de certezas ou aparente magia, transformava-se lentamente numa linda dança, sem arte ou mesmo empenho e tão perto de tudo o que sempre desejei...
Podia ficar ali para sempre, enamorado pela música...embalado pela sensação de nada mais precisar.
Horas mais tarde voltava para casa, arrastando-me com um sorriso eterno. Dentro, uma paz enorme, conquistada pela música, uma dança imaginária e a tarde mais real que alguma vez vivi...

segunda-feira, outubro 16, 2006

Anjos negros...

De todos os mitos, pensava noutro…em que pudesse não acreditar. Anos atrás, li num jornal uma estranha história. Contada num artigo, estava a fábula dos Anjos Negros. Num certo Verão, nas estradas de interior do país, mas nunca junto ao mar, eram muitas vezes vistos vultos negros passando a grande velocidade pelos automóveis que circulavam. A verdade é que não eram realmente vistos. Sempre em noites sem luar e na maior das escuridões algo passava muito depressa, deixando os condutores com uma horrível sensação que não podiam explicar. Assim era porque à incerteza do que não viram, juntava-se um sentimento que trazia pouco medo ou curiosidade. Apenas sentiam a sua presença.
Dias passaram, os relatos aumentaram e a polícia foi encarregue de investigar o estranho caso. Mas o que a todos apaixonou foi a teoria de um jovem parapsicólogo que apareceu um dia, de estranho laço encarnado, num pouco preparado noticiário das oito.
O rapaz, de figura simpática e verdadeira, contou a todos do que se tratava. Eram Anjos!
Anjos Negros que protegiam os humanos de muitos perigos. Segundo uma antiga lenda não era suposto os Homens terem inventado transportes rápidos e modernos. A sua descoberta deveu-se a coincidências de engenharia e à demasiada vontade de alguns. E assim surgiram automóveis, motas e comboios que, por não serem esperados, desequilibraram o nosso Mundo. Os acidentes chegaram e também as mortes e profundas tristezas…
Nessa tempo foram criadas estas criaturas, negras por esconderem a sua intenção, mas sempre vigilantes aos que escolhiam a noite para viajar. Os acidentes pararam subitamente! Sem razão para tal. Sem qualquer explicação.
A maior parte dos viajantes começou então a escolher a escuridão para abraçar a estrada. Durante o dia apenas rodavam os que tinham de trabalhar naquele Agosto tão quente, mas mais calmo e sereno por serem poucos os que saíam durante o dia. As noites de Lua cheia eram autênticos acontecimentos nacionais, com milhares de pessoas sentadas nas bermas das estradas, esperado que os raios brancos e prata revelassem estes protectores. Sem sucesso, mas com longas madrugadas preenchidas por conversas amenas.
Ao primeiro dia de Setembro o noticiário abriu com uma reviravolta. Era relatado um brutal acidente numa auto-estrada no centro do país, perto das quatro horas da manhã.
Um autocarro tinha embatido violentamente contra os separadores, rebolando para a faixa contrária. A causa do acidente deixava o país em choque. O despiste tinha sido causado por três carros que circulavam a grande velocidade na mesma via. Quase a meio quilometro de distância as viaturas foram encontradas, viradas ao contrário, mas sem danos de maior. O que causaria espanto era outro pormenor. Os carros eram completamente negros. Nem um centímetro da carroceria mostrava esperança de cor. As matrículas tinham sido retiradas, os vidros eram escuros, as jantes estavam pintadas de preto e até os espelhos retrovisores estavam cobertos por uma fita isoladora igualmente negra. Os ocupantes nunca apareceram!
Dias depois as autoridades informaram ter desmantelado uma organização secreta que promovia corridas por todo o país, ligadas a redes ilegais de apostas e furto de automóveis.
O parapsicólogo foi ridicularizado na sua última aparição em televisão e, à medida que o Outono chegava, os acidentes voltaram às noites sem luar…

domingo, outubro 15, 2006

Uma noite...

O tango…

Não é possível ler estas palavras sem que sejam acompanhadas por música escolhida para o efeito.
Que permita um doce embalar de sentimentos e percepções muito pequenas.
Talvez erre ao chamar-lhes tango, mas essa é uma das vantagens e belezas da imaginação. Não vale a pena explicá-la. Nem sequer demorar mais que momentos em tentativas que não trazem respostas.
Consegui, ao fim de muitos anos a suprema glória de dominar os sonhos. E então, corajosamente abraçando esta nova capacidade, saí numa calma noite de Primavera.
Era bem real o cheiro do Verão esperando a uma esquina e o aperto na barriga que me alertava para algo que ainda não chegara…
Passei junto a um discreto arco de néon que alternava com a escuridão e onde conseguia ler uma única palavra…Tango!
Uma porta pequena, que conduzia a escadas pouco iluminadas do que supus ser um salão de baile, atraiu-me ao seu interior.
Fui recebido por um porteiro educado, muito baixinho, de lenço fadista ao pescoço e uma suave voz repleta de gentileza.
Entrei no salão com cores de sangue e rosas latinas, que roubavam o pouco oxigénio que ainda persistia.
Havia pouca gente e a maior parte parecia, pela atitude e postura, ser parte do pessoal da casa que, na ausência de trabalho, conversava descontraidamente.
Ao centro dançava a mais feia bailarina que alguma vez havia visto que, num acaso mórbido, era igualmente horrível na forma jamais sedutora com que martelava o chão de madeira escura.
Não tive tempo, apesar da tentativa, de recuar daquele sonho que já não controlava e fui envolvido por um cheiro putrefacto que um lenço gasto exalava com persistência.
A bailarina, mistura disforme de Mari Carmen com qualquer coisa, rodopiava em meu redor, fazendo o trapo vermelho a que chamara lenço abraçar-me de forma grotesca.
A indumentária de vermelho flamengo, nada tinha a ver com um agradável bolero, único elemento que me ajudava a resistir e que tinha escolhido num ínfimo momento em que recuperei o controlo deste sonho quase pesadelo, só para logo o perder de novo no meio dos cheiros, fumos e ambiente difícil de descrever.
Aproximava-se a altura do beijo roubado, neste caso com contornos de sequestro, quando consegui fugir tropeçando nas escadas e no breu que as cobria.
Acordei sem transpirar e com um terror moderado, mas com saudades daquela música que me salvara e do sonho de uma noite inesquecível.
Voltaria no próximo sono…para reencontrá-la, e a todos os outros protagonistas de um quadro desenhado apenas pela vontade de isolar acordes mágicos que faziam parte do que chamo felicidade. Tangos toscos com pedaços do nosso mundo!

O início...

Todos os dias, ao abrir os olhos, não devemos fazê-lo de forma impetuosa. É com cuidado que despertamos para o dia. Se for possível, convém mesmo abrir primeiro só um olho, bem devagarinho, para garantir que ainda estamos no mesmo local. Certas pessoas acordaram arrepiadas por se verem num qualquer lugar distante e desconhecido. É uma experiência que não desejamos. Olhos abertos por fim, há que avançar em bicos de pé até a uma música previamente escolhida ou seguida por impulsos. E depois resta um doce esticar, para não temer e poder iniciar o dia...